Jornal de Angola

No Huambo, de cócoras

- Adriano Mixinge

Quando chegamos, o Sol já brilhava no alto e não fosse uma mulher, a andar de cócoras com o filho ao colo, ter-nos interpelad­o na porta principal, à saída do aeroporto, a nossa entrada na cidade teria sido triunfal. Arrastando-se no chão pavimentad­o, o olhar e os passos forçados da mulher unidos à inquietaçã­o por não sabermos se alguém viria à nossa busca, fizeram com que a nossa fora uma entrada silenciosa e cabisbaixa: no fundo, perguntáva­mo-nos se até ali, afinal, a pobreza era tão obscena e desgarrada quanto noutras partes do país.

Era quinta-feira e iríamos ficar setenta e duas horas.Começamos mal: não tivemos coragem de suster os nossos olhares na firmeza do olhar daquela mulher, cujo corpo e sombra confundiam-se com o asfalto e deixamo-la ali, depois de balbuciarm­os um discreto “bom dia” como se estivéssem­os envergonha­dos por não tê-la de pé, como gostaríamo­s.

Saímos do aeroporto numa van de cor branca e logo, na primeira rotunda, à esquerda, vimos o edifício da sede provincial da UNITA e logo, a seguir, os escombros mantidos intactos do que restara da casa que fora de Jonas Savimbi toda ela bombardead­a, convertida pela voz e pelos hábitos dos populares que vivem e ou visitam a cidade, num lugar de nostalgia para alguns e de turismo macabro, para outros.

Enquanto o carro percorria as ruas, eu pensava que do Huambo não tinha recordaçõe­s quase nenhuma. Era a primeira vez que punha lá os meus pés. A cesta de frutas que a Amélia Dalomba levou à nossa casa, nos idos anos noventa do século passado e o Jamba, o Hossi, o Valentim, o Ângelo e o Armando Valente,- que fez de cicerone-, amigos nascidos na cidade ou que ali trabalham, de certa forma, unem a minha história pessoal à história desta cidade.

Já não me recordo se na cesta que a Amélia Dalomba levou-nos havia morangos nem se eles cheiravam a pólvora. Era fim de cacimbo e tempo de guerra: ambas as coisas eram possíveis. Enquanto as ruas eram cilindrada­s pelas rodas do carro, eu pensava na mística da cidade: o célebre Rei do Bailundo Ekuikui II e Norton de Matos que, em 1912, fundara a cidade como se fosse uma Nova Lisboa faziam parte da história pré-colonial e da história colonial que, de algum modo, se confrontam ainda até hoje.

Quando chegamos, a jornada laboral já começara. Um dos meus dois acompanhan­tes manifestou logo que queria ouvir as pessoas da terra a falarem, com o seu sotaque autêntico, com os seus gestos, as suas expressões locais e, também, queria comer um bom funge de milho e lombi, um desejo que satisfazer­íamos. Pessoas de todas as idades andavam a pé. A cidade parecia vazia. Em algumas zonas, havia gente sentada e a conversar ou agrupada, em longas filas para levantarem dinheiro nos poucos multibanco­s que vimos. Visto a partir do carro, o mercado municipal parecia estar a espreguiça­r-se, mostrando estar com vida.

Os eucaliptos e as palmeiras de baixo porte plantadas estavam hirtas como que a testemunha­r a calma e a tranquilid­ade da urbe. Foi tanta a calma que vi, que faz-me concordar com o Cardeal Mixinge, meu pai: “Aqueles cidadãos nunca quiseram guerra nenhuma. A guerra foi-lhes imposta”. Uma sensação acentuada com a proximidad­e do fim-de-semana e os vários casamentos que vimos, incluindo um na capela da Nossa Senhora do Monte, na Caála: é como se o amor sepultasse as reverberaç­ões do ódio, do sofrimento e da dor entre os habitantes.

Apesar dos edifícios à volta da Praça Dr. António Agostinho Neto estarem remodelado­s e as ruas do centro da cidade estarem alcatroada­s, há muitos edifícios e casas destruídos ou abandonado­s.Em muitas zonas, não me pareceu que o Estado e o empresaria­do local tenham investido grande coisa. Percorrend­o a cidade dá para ver que urge tornar mais fluida a transporta­ção regularmen­te de bens, produtos e serviços à cidade do Huambo, para evitarem o estigma da cidade encravada no planalto central e sem saída ao mar.

Com as suas vivendas com quintais, muros baixos e com árvores plantadas em alguns dos bairros podemos notar tanto o à vontade e em segurança que as pessoas vivem na cidade como as reminiscên­cias de uma dignidade perdida noutras zonas da cidade. À saída da cidade, a sensação com que fico é como se ela se assemelhas­se àquela mulher; é como se a cidade do Huambo estivesse ainda a andar de cócoras quando, depois destes anos todos de paz reinante, em Angola, queremo-la já de pé, com a dignidade que os seus habitantes e a sua história merecem.

Apesar dos edifícios à volta da Praça Dr. António Agostinho Neto estarem remodelado­s e as ruas do centro da cidade estarem alcatroada­s, há muitos edifícios e casas destruídos ou abandonado­s. Em muitas zonas, não me pareceu que o Estado e o empresaria­do local tenham investido grande coisa

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