JOSÉ LUÍS MENDONÇA
Do Mayombe à Cidade Alta
Quem já leu mais de uma vez o romance de Pepetela, Mayombe, será tentado a definir a luta armada de libertação como tema central do mesmo. O romance tem outros temas colaterais, dos quais realçamos o fenómeno do tribalismo, o racismo, a excessiva verticalidade das relações numa organização humana, o destino do homem africano, etc. Depois de mais de uma leitura de Mayombe, eu cheguei à conclusão que o tema central do romance não é a luta pela independência, não é a tarefa guerrilheira. É muito simplesmente, a problemática do Poder Político.
Morto o comandante Sem Medo e alcançada a independência toda a problemática do poder ilustrada no romance foi transladada das matas do Mayombe para a Cidade Alta. Ao fim de 44 anos, um dos problemas apontados no romance, que é o comportamento de André, símbolo do individualismo e do deixa-andar e, diríamos até, da corrupção, fenómeno este que até foi alvo de análises e de intensos debates a nível do partido no poder, não foi travado, controlado, fiscalizado.
Eu tenho quase a certeza de que nem todos os membros do mais alto escalão no poder em Angola leram esta obra de Pepetela. E lê-se cada vez menos no nosso país. Este fenómeno da desconsideração da obra literária e dos respectivos autores, alguns dos quais ostracizados a vários níveis, ajudou a chegarmos à situação que agora faz parte da cruzada do Presidente João Lourenço para tentar combatê-la. Pepetela procurou mostrar, logo no início da nossa independência, quais eram os defeitos de construção do Estado herdado do colonialismo, muitos dos quais resultam da nossa própria história, do nosso sistema de organização e vida comunitária. O principal é o excesso de autoritarismo, que resulta na rejeição do outro.
Há tempos, o professor Carlos Lopes fez o lançamento em Luanda do seu livro sobre Economia, África em Transformação, na Universidade Agostinho Neto. O que mais me impressionou na apresentação de Carlos Lopes foi a revelação de que os países da África subsaariana apresentam altos índices de desorganização administrativa. Outro aspecto que me marcou foi o debate, no qual o Professor Carlos Feijó avançou a ideia de que nós, africanos, somos seguidistas, copiamos modelos ocidentais, e por isso é que não alcançamos o desenvolvimento. Segundo Feijó, é tempo de criarmos modelos nossos de desenvolvimento. Esta tese também é avançada por outros académicos angolanos, dentre os quais se destaca o Professor Marcolino Moco.
Ora, é este aspecto dos modelos políticos em África que muito me seduz. E permito-me discordar tanto de Carlos Feijó, quanto de Marcolino Moco. Nós, africanos, não copiamos nenhum modelo ocidental. Fomos seguidistas, empurrados pela Guerra Fria. No caso angolano, continuamos, depois da queda do Muro de Berlim, a ser seguidistas formais do neo-liberalismo e da economia de mercado. Mas somente na forma. Um Parlamento, uma Constituição, leis herdadas do tempo colonial, com algumas reformas, eleições periódicas, etc. No entanto, no âmago do Poder Político, no coração do Estado angolano, o que sempre vigorou foi o mesmo substrato do autoritarismo desmedido, próprio das regências bantu. O que nós tivemos aqui em Angola foi uma monarquia capitalista, com sistemas de governo do tipo feudal, no nosso caso tradicional, pois que assente num provérbio africano: “O cabrito come onde está amarrado”. Esta é que era a nossa Constituição.
Estamos aqui a levantar esta problemática, tendo como ponto de partida o romance de Pepetela, para ajudar os líderes políticos de todos os matizes, os da situação, os da oposição e os sem-partido (insisto neste grupo) a lerem (ou relerem) Mayombe.
Porque ler ou reler esta obra? Porque a análise das razões da luta armada de libertação continua a ser a chave para a criação de um Estado Social verdadeiramente independente. A luta armada tinha como um dos fundamentos a Utopia Social do Renascimento Africano, que pressupõe a Justiça Social, escorada por princípios ético-antropológicos.Estes princípios estavam todos eles revestidos de um objectivo central: a elevação da condição humana, correspondente, embora não expressa no ideário dos nacionalistas desta forma, ao artigo 25º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar a si e à sua família a saúde e o bem-estar…”
Creio que este deve ser o ponto de partida da acção política, pois que e se situa para além das ideologias e regimes políticos. É universal, consensual e pode agregar todos os angolanos em torno da sua concretização.
Mayombe também nos leva a cruzar os dados da História do nosso país. Nos últimos 60 anos, o povo angolano conheceu três dolorosas guerras: a de libertação (14 anos); a chamada guerra civil (27 anos); a guerra económica ou da expatriação de capitais (15 anos). A guerra civil e a guerra do Capital somadas dão o triplo da duração da luta armada anti-colonial. Se não nos analisarmos a nós mesmos, como africanos de uma era que nos deixou profundas cicatrizes, vamos continuar a lutar pelo poder, ou agarrados a ele, sem soluções para o país.
Uma nova Angola exige uma postura fundamental: o outro, o vizinho, o adversário político são parte de Angola e têm os mesmos direitos que eu tenho. O modelo formal de democracia partidária, em que o partido no poder é o único a administrar até ao escalão mais baixo, já não serve, porque foge aos parâmetros da democracia que consagramos constitucionalmente. A democracia ocidental pressupõe a participação dos talentos todos do país na produção do desenvolvimento, pressupõe a alternância política (a começar dentro dos partidos) e a competitividade dos agentes económicos, coisa ausente da nossa experiência pós-colonial. Ainda temos uma Administração partidarizada. É altura de convocarmos a participação de outros cérebros, fora do partido e até mesmo de dentro, no arranque económico. Como é que os camaradas que estiveram no topo da cadeia predadora da nossa Economia (os Andrés do Mayombe, de Pepetela, que, já na guerrilha, estavam a pensar individual e não colectivamente) poderão devolver ao capim a caça já digerida, ou deixar as gazelas pastar sossegadamente, estando no cume do morro?