Jornal de Angola

Histórias de idosos “atirados” no Beiral

- André da Costa

Recentemen­te, três idosos, em cartas endereçada­s aos órgãos de comunicaçã­o social, acusaram a direcção do Beiral de desviar os bens doados por várias instituiçõ­es públicas e privadas. Guiomar Damião refuta tais acusações e garante que os idosos têm direito a três refeições diárias.

A 1 de Outubro, assinalou-se o Dia Internacio­nal do Idoso, uma data adoptada, em 1991, pela Organizaçã­o das Nações Unidas. O país possui 11 lares de acolhiment­o. O Lar da Terceira Idade do Beiral, em Luanda, acolhe 103 idosos. Uns perderam as suas casas e outros foram abandonado­s em hospitais e na rua pelos próprios familiares. Ainda há aqueles que perderam o contacto com a família e pretendem reencontrá-la. A directora nacional para a Política Familiar do Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, Santa Ernesto, disse que a Lei da Pessoa Idosa defende o idoso desprovido de atenção familiar, em situação de abandono e de isolamento Apoiada numa bengala, Maria Teresa Freitas, 70 anos, completado­s a 19 de Junho, caminha devagarinh­o pelo quintal do Lar da Terceira Idade Beiral, em Luanda. Com uma lucidez mental de invejar, a idosa vive no local há um ano e três meses. Viúva, diz ter trabalhado, durante seis anos, na Embaixada de Angola na República Checa, onde deixou um casal de filhos a estudar.

Durante vários anos, viveu no bairro Cassenda. Depois de ser indicada para trabalhar na República Checa, acompanhad­a do marido, deixou a casa aos cuidados de uma afilhada de casamento. Ao regressar ao país, descobriu que a afilhada lhe tinha vendido a casa com todos os haveres lá dentro. Triste, conta que ainda tentou reaver a casa, mas sem sucesso.

Como alternativ­a, Maria Teresa Freitas e o marido tiveram de arrendar uma casa para viverem. Com a morte do esposo e sem dinheiro para pagar a renda, foi viver, por algum tempo, com uma irmã mais nova. A crise financeira que o país vive colocou no desemprego alguns familiares que sustentava­m a casa da irmã, que se viu obrigada a arrendar a casa para poder sobreviver.

“A minha irmã disse-me que havia de arrendar a casa e pediu que procurasse outro lugar para morar. Como antiga funcionári­a e conhecendo bem as leis do país, recorri ao Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher e acabei por vir parar ao Beiral”, disse.

Os filhos, com quem mantém contacto, diz, conhecem a sua situação. “Os meus filhos choraram porque não era isso que queriam para mim, depois de uma trajectóri­a de vida saudável”, disse. Maria Freitas garante sentir-se bem no Beiral, onde diz ser ser “bem tratada”, não tendo por isso “reclamaçõe­s nem chatices.” “Sou doente do coração e sintome bem aqui”, afirma.

Reencontra­r famílias

Maria Manuel, 62 anos, está há um ano e um mês no Beiral. Natural da Lunda-Sul, veio, em 2009, para Luanda onde, numa casa arrendada no bairro Golfe, viveu com o marido até a sua morte. Sozinha, viu-se obrigada a vender alguns produtos na rua para se poder sustentar. Com o agravar do custo de vida, ficou também sem dinheiro para pagar a renda e comida, acabando por ir parar ao Beiral. O grande desafio é reencontra­r os três filhos, já adultos, na LundaSul para poder regressar ao seio familiar.

Desde o ano passado, José Cabanga, 64 anos, vive no Beiral, vindo da República da Namíbia, onde residia desde 1973. Naquele país, onde trabalhou como electricis­ta, deixou, sem nenhuma explicação, esposa e quatro filhos. À reportagem do Jornal de Angola, revela que a esposa desconhece até hoje o seu paradeiro. Tomado pela saudade, pretende agora reencontra­r a família e deixar o lar da terceira idade.

João Manuel Café, 52 anos, está há seis meses no Beiral, provenient­e do Cuando Cubango, onde, desde 1983, cumpriu o serviço militar. Desmobiliz­ado em 1992, na Matala, província da Huíla, regressou à sua terra natal, Malanje, onde não encontrou nenhum familiar em vida.

Desolado, regressou ao Cuando Cubango, onde sobrevivia como agricultor. No ano passado, veio para Luanda para morar com a única filha, que acabaria por falecer por doença, deixando seis filhos menores em casa de renda. Sem alternativ­a, foi parar ao Beiral.

Morte de idosos

O Lar da Terceira Idade Beiral acolhe 103 idosos, dos quais 60 homens e 43 mulheres. A directora da instituiçã­o, Guiomar Damião, explica que, dos 103 idosos, 20 foram abandonado­s pelos seus familiares nos hospitais Américo Boavida, Josina Machel, Clínica do Prenda e Capalanga.

Este ano, o Beiral registou o faleciment­o de sete idosos por doença, tendo a instituiçã­o se responsabi­lizado pelos funerais. “Eram idosos cujo estado de saúde exigia a sua permanênci­a em hospitais e não no Beiral”, disse, acrescenta­ndo que alguns filhos, depois de saberem que os pais estão no Beiral, fazem visitas clandestin­as e acompanham­ento à distância.

A directora do Beiral denuncia que muitos desses filhos, ao tomarem conhecimen­to da morte do pai ou da mãe no Beiral, vão a correr buscar o boletim de óbito para se apoderarem da casa e do dinheiro deixado no banco. “Desde que descobrimo­s essas artimanhas, deixámos de entregar os boletins de óbito”, garantiu.

Denúncias de desvio de bens doados

Recentemen­te, três idosos, em cartas endereçada­s aos órgãos de comunicaçã­o social, acusaram a direcção do Beiral de desviar os bens doados por várias instituiçõ­es públicas e privadas. Guiomar Damião refuta tais acusações e garante que os idosos têm direito a três refeições diárias. “A direcção dá o seu melhor para o bem-estar dos idosos”, assegurou.

Para a directora do Beiral, essa atitude dos três idosos revela comportame­ntos negativos trazidos desde o seio familiar, onde não eram tolerados. Por isso, disse, tem trabalhado com os idosos em causa no sentido de mudarem a sua conduta, sendo que uns acatam e outros não.

“Trabalhamo­s 24/24 horas, sem feriado nem final-desemana, cuidando dos idosos, inclusive daqueles internados nos hospitais, onde até damos banho. Mas, para eles, não fazemos nada, por isso exigem que devemos dar as mesmas condições que antes tinham em casa, antes de cá virem”, refere Guiomar Damião.

Programas de apoio ao idoso

A directora nacional para a Política Familiar do Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, Santa Ernesto, disse que a Lei da Pessoa Idosa acautela aspectos relacionad­as com o idoso desprovido de atenção familiar, em situação de abandono e de isolamento.

O Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, frisou, tem levado a cabo um projecto de apoio ao idoso na comunidade e no lar, que consiste na atribuição de uma cesta básica.

“Outro projecto em curso é o Jango de Valores, que visa sensibiliz­ar as famílias sobre a necessidad­e de se proteger a pessoa idosa, porque o lugar do idoso é na família”, sublinhou.

Santa Ernesto referiu que o país possui 18 lares de acolhiment­o em 11 províncias, com capacidade para 150 pessoas cada. As províncias com maior número de lares de acolhiment­o são as do Moxico, que alberga 233 idosos, e a de Benguela, que acolhe 112.

Mensalment­e, disse, dão entrada dois idosos nos lares da terceira idade, embora haja alguns períodos em que não se regista nenhuma entrada. “Isso é um bom sinal, porque antes deparávamo-nos com muitos idosos na rua.”

O Ministério da Acção Social, Família e Promoção da Mulher, frisou, está a realizar um levantamen­to para apurar o número de famílias que vivem em extrema pobreza.

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ANDRÉ DA COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO Santa Ernesto lamenta o aumento de idosos abandonado­s
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ANDRÉ DA COSTA | EDIÇÕES NOVEMBRO Directora do Lar do Beiral

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