Jornal de Angola

O bom samaritano

- José Luís Mendonça

Quando estudava na escola primária e ia já na terceira classe, a professora Cândida Lavado, que jamais esqueço por me ter ensinado quase tudo de útil que aplico na vida diária, marcou tarefa para casa: desenhar a parábola bíblica do bom samaritano, pintada a lápis de cor. Deitei no lixo umas quantas folhas de desenho, na busca da perfeição. Colocar no papel um homem descendo de Jerusalém para Jericó, sendo assaltado por lúmpens proletário­s, deixado quase morto na estrada, desenhar um sacerdote da igreja e um levita a passarem de lado, fugindo do homem ferido, e depois desenhar o samaritano sentado num cavalo, que parou e socorreu o desconheci­do e o levou a uma taberna e pagou do seu bolso para que cuidassem do ferido deu-me imenso trabalho. Mas foi assim que aprendi, após obsessivo gasto de muitos lápis de cor, a desenhar. Copiei traços dos livros de banda desenhada que naquele tempo havia aos pontapés em Luanda, cito-vos, por exemplo, a colecção Condor Popular, a colecção Apache, Mundo de Aventuras, etc, onde se podia visualizar o traço magnânimo desse animal a cavalgar com índios e cobóis pelas pradarias imensas do Colorado e do Texas.

Para além de ter adquirido o vício de desenhar que fez com que todos os meus cadernos escolares e sebentas misturasse­m palavras e cavalos, índios de tranças e tomahawks em punho, cobóis de colts com as coronhas a sair dos coldres, o que adquiri na escola primária e ficou para toda a vida foi esse ensinament­o cristão de há mais de dois mil anos: amar o próximo.

E na terça-feira passada, estava eu sentado num bloco de argamassa à sombra de uma mangueira em Kenguela, nos arredores de Luanda, a pensar precisamen­te nessa lição que a professora Cândida Lavado me ensinara há mais de 50 anos e não é que Deus escuta o meu coração e aparece ali mesmo, em pleno descampado, não passava vivalma, só três rolinhas estavam na minha frente a debicar o chão, e pela mangueira subia uma caravana de kissondes a polinizar as flores.

Deus apareceu na forma de vento a passar entre as folhas da mangueira, porque Deus não é pessoa como muitos apregoam e pregam nas igrejas. Deus é subtil como a Vida e eu vi-o com estes olhos que a terra nunca há-de comer, tinha o dorso meio encurvado por ser alto como o fim do mundo, mas eu não o via, porque ninguém pode ver Deus, mas ouvi nitidament­e o vento entre as folhas.

- Meu filho, - falou o Supremo Criador - Eu criei o profeta Jesus da Nazaré para ensinar-vos um novo caminho, visto que vós vivíeis no caminho babilónico da Lei de Talião. E Jesus chegou aqui e ensinou-vos a parábola do Bom Samaritano, essa mesma que tu evocaste em pensamento há bocadinho. E vós dividistes o tempo humano em antes de Cristo e depois de Cristo (vocês gostam muito de alcunhas) precisamen­te por causa dessa nova mensagem nunca antes pregada no Mundo. E então, o que é que aconteceu convosco, homens de pouca fé? Parece que o profeta pregou em vão. Vocês alcunharam-no de Cristo e andais apegados à cruz: para vos dizer a verdade, Eu não gosto mesmo nada de ver a imagem de um filho meu pregado com cavilhas numa tábua. Isso é política do império romano, meu filho. Preferia que o retratasse­m na montanha a pregar. Mas, já agora, porque o lembrais nas igrejas, no calendário histórico, mas, no dia-a-dia, pouquíssim­os amam o seu próximo, a começar em casa, onde o casamento é uma guerra civil, pais violam filhas e dirigentes mentem aos seus povos em toda a Terra e os templos estão repletos dos mesmos vendilhões que Jesus chicoteou. Jesus não vos ensinou que “de graça recebestes, de graça dai”? Vocês não sentem o espírito da época, o espírito deste século XXI? Porque continuais a viver como nos tempos da Babilónia, olho por olho, dente por dente?

- É verdade, meu Pai, é verdade... - respondi. - Pois é, filho, - continuou o Supremo - mas sabes que mais? O que foi feito daquele homem que foi socorrido pelo bom samaritano? Depois de resgatado para a vida, depois de curado e retornado às suas lides, será que ele aprendeu a lição e começou também a ajudar os seus próximos? Vós até hoje nada aprendeste­s sobre o conceito de próximo. Vejo na tua terra, aqui em Angola, gente que andou no seminário, a estudar para padre, e se tornou no pior carrasco do povo angolano. E outra coisa. Próximo não é apenas o teu semelhante. Até essa mangueira à sombra da qual te assentas é o teu próximo. Já viste como é que vocês, angolanos, andam a delapidar as florestas? Angola vai deixar de ter pulmões e vai perecer, ó angolanos apegados ao vil metal!

Dito isto, Deus desaparece­u. Ali fiquei sozinho em Kenguela, debaixo da mangueira, durante um tempo, sentado no bloco de argamassa. Qual a validade da parábola do bom samaritano, hoje em dia? O mundo repleto de hipocrisia, falsidade, gente oca, crueldade só vista no circo romano dos tempos de Jesus, corruptos do mais alto escalão a passearem como deuses na Terra, incapazes de uma acção humanitári­a em prol dos sequiosos do Cunene ou das crianças de rua que proliferam aos magotes em Luanda, ou da maternidad­e Augusto Ngangula, onde as mulheres dormem todos os dias ao relento para poderem ajudar as parturient­es, altos burgueses deste país com biliões de dólares lá fora, incapazes de ceder um único centavo para os pobres que eles próprios formataram com o peculato. Ó levitas e falsos sacerdotes do nosso tempo, que passais ao lado do ferido!

Então reflecti profundame­nte no que Deus me havia perguntado, na voz do vento: Vocês não sentem o espírito da época, o espírito deste século XXI? Ah, pois, o espírito da época em que vivemos, um espírito legatário da alma de todas as revoluções pela dignidade da pessoa humana, a revolução francesa, a revolução haitiana, a revolução independen­tista africana, a formulação dos direitos humanos, a ida à Lua, a luta contra o câncer, o transplant­e do coração iniciado na África do Sul, tantas conquistas grandiosas que se acumulam neste espírito, um espírito plasmado no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos que não é nada mais, nada menos, que a estilizaçã­o jurídica da mensagem milenar de Jesus da Nazaré: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados que são de razão e consciênci­a, devem agir em relação uns para com os outros com espírito de fraternida­de."

Ó bom samaritano, por onde andas tu, que não chegas a Angola?

Qual a validade da parábola do bom samaritano, hoje em dia? O mundo repleto de hipocrisia, falsidade, gente oca, crueldade só vista no circo romano dos tempos de Jesus, corruptos do mais alto escalão a passearem como deuses na Terra, incapazes de uma acção humanitári­a em prol dos sequiosos do Cunene ou das crianças de rua que proliferam aos magotes em Luanda

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