Alicia Alonso sempre!
Já com mais de 40 anos executou os 32 fouettés – piruetas sobre o próprio eixo em uma só perna do “Lago dos Cisnes.” Ela também desafiava as jovens bailarinas com os saltos para trás que dava na ponta do pé com a outra perna erguida em ângulo de 90 graus
De vez em quando costumo ver a Cubavision para acompanhar a criatividade com que os cubanos intentam soluções económicas, debatendo, por exemplo, sobre os lucros das cooperativas e das empresas estatais, bem como o seu destino. Agora o écran apresenta-me um cortejo, carros e autocarros novos. É um cortejo fúnebre. Morreu Alicia Alonso. O povão enche os passeios da rua. Aos 95 anos, a Diva do ballet remete-me para um manancial de memórias que me fazem rebentar as lágrimas e deslizar a televisão.
A menina andava em pontas de pés pela casa com ralhetes do pai, um veterinário militar. Era Alicia Ernestina de la Caridad del Cobre Martinez del Hoyo. Queria ser bailarina. O pai opunhase. A mãe apoiava a vocação, em tempos em que ser artista era quase ser considerado improdutivo, vadio ou desempregado.
Emigrada muito jovem para os Estados Unidos, concluiu sua formação em Nova Iorque, entrou para o American Ballet Caravan, hoje New York City Ballet, e foi fundadora do Ballet Teatre em 1940. Casouse com o coreógrafo e director Fernando Alonso, de quem manteve o sobrenome mesmo após o divórcio em 1975.
Regressou a Cuba em 1948, fundou o Ballet Alicia Alonso que dois anos depois da vitória da revolução de Fidel Castro se tornou o Ballet Nacional, apoiado pelo Estado. Casada pela segunda vez com Pedro Simón, director do Museu Nacional de Dança, manteve-se no activo ascendente até 1995, após uma digressão por palcos italianos.
Antes de Alicia, o ballet era quase desconhecido e ela congregou gente, quebrando preconceitos ou barreiras raciais e chamando rapazes numa sociedade com a herança de considerar um bailarino homossexual. O certo é que ela levou a pequenez da ilha e sua pouca população às acrópoles mundiais da arte, dançando no Bolshoi de Moscovo ou no Ballet da Ópera de Paris.
Já com mais de 40 anos executou os 32 fouettés – piruetas sobre o próprio eixo em uma só perna do “Lago dos Cisnes.”Ela também desafiava as jovens bailarinas com os saltos para trás que dava na ponta do pé com a outra perna erguida em ângulo de 90 graus.
Alicia sofreu descolamento de retina nos dois olhos, aos vinte anos. Os médicos exigiram repouso para que a doença não aumentasse com o risco de ficar cega, mas ela continuou dançando. Foi operada, voltou a dançar. Havia luzes no cenário para orientar Alicia que só via sombras, já praticamente cega. Entre a visão e a dança, ela escolheu a dança, o virtuosismo de escultura revolvendo as nuvens com pescoço esguio e perfurador da sensibilidade de quem a via. Foi assim que eu conheci e tive a oportunidade de conversar com essa Diva que Havana deu ao mundo.
Alicia, a bailarina e coreógrafa foi imortalizada em vida, pois em 2015 o Grande Teatro de Havana passou a chamar-se Alicia Alonso.
Mesmo cega e com problemas motores ela falava assim: “Danço dentro de mim, com os olhos fechados.”
Só deixou as sapatilhas de ponta em 1995 com 74 anos.
Alicia, que se estreou na Brodway no fim dos anos trinta, cega aos vinte anos, dançou guiada pelas luzes até 1995.
Há quem diga que durante meio século ninguém representou melhor do que ela a personagem principal do ballet romântico “Giselle” e ainda “Carmen”, Coppelia” e o “Quebra-nozes.”
Alicia aderira à Revolução que, doa a quem doer mesmo a quem bloqueia a ilha e lhe ocupa um espaço para campo de concentração, transformou a ilha num oásis de arte, desporto e medicina. Aliás, há correspondência de Fidel para Alicia tecendo-lhe elogios, pois o comandante era culto, lia muito, mandava estimular a música, o cinema ou o teatro. Por isso a Diva do Ballet foi uma grande embaixadora da cultura cubana, onde o ballet que Alicia representou e ensinou a várias gerações deixou de ser arte de elite para ser popular como a salsa ou o movimento da nova trova.
Alicia não morreu. Porque é uma mitologia e uma lenda.
Aimara Vassalo, hoje subdirectora da Academia de Dança de Carlos Acosta, tem 42 anos, dos quais 23 dançando no Nacional de Cuba: “Meu sonho era ser bailarina e entrar no BNC. Para todo garoto que desejava dançar, Alicia era o paradigma e a referência, e graças a ela muitos pudemos cumprir nosso sonho.”
Morreu com 98 anos faz hoje oito dias. A morte é o fim, deste lado. Nunca o do outro que é o da perpetuidade do deleite dos que estão fisicamente vivos e podem deliciar-se com a arte, quase única simbologia da quase eternidade que ultrapassa os cinco sentidos.
Eu escrevi num poema “Este lenço azul e branco” : Eu não me despedi de Santiago/ que ninguém se despede do futuro / acenei apenas hasta siempre…”
Também com Alicia. Não me despeço de ti. Revejo teu rosto. Teu pescoço e nariz de perfil. Recordo tua face que beijei. Teu respirar. Então só posso abrir o meu coração para xinguilar dizendo: Asta siempre Alicia!