Jornal de Angola

Pela construção do cânone literário angolano

- Isaquiel Cori DR

“Alumbu – O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano - Para uma Hermenêuti­ca Cultural”, o livro de Luís Kandjimbo editado pela Mayamba e apresentad­o ao público na última quarta-feira, em Luanda, na sede da União dos Escritores Angolanos, é uma colectânea de textos que pretende inscrever-se, segundo o próprio autor, “na melhor tradição ensaística e tematizar problemáti­cas da cultura angolana no contexto mais geral das culturas africanas”

É no domínio da literatura, mais concretame­nte da formulação ou da interpreta­ção das poéticas, e da Cultura em geral, onde se travam, em última instância, os grandes combates pela prevalênci­a da ideia de identidade e de soberania dos povos. Porque na verdade tudo começa pelas ideias que nutrimos a nosso respeito, sobre o que nos rodeia, sobre donde vimos e para onde queremos ir. E é essa capacidade de geração de ideias próprias que a globalizaç­ão, tendencial­mente, destrói ou esmorece nas sociedades periférica­s deste “vasto mundo”.

A crónica pobreza material, ao atirar as pessoas para um círculo de sobrevivên­cia, tira-lhes a capacidade de valorizar ou priorizar o abstracto, que é a dimensão onde, afinal de contas, se estrutura o pensamento a respeito de nós mesmos, dos nosso passado e do nosso destino.

Luís Kandjimbo (LK) é um intelectua­l angolano que, de modo concreto, consistent­e e coerente, desde a década de 1980, vem publicando textos ensaístico­s, em seminários, congressos ou conferênci­as em Angola e no exterior, em publicaçõe­s periódicas e em livros, onde o seu pensamento, que no princípio se circunscre­via à literatura e depois à filosofia e à Cultura, possui um leitmotiv: a perspectiv­a angolana e africana da análise. Para ser mais preciso, a perspectiv­a “endógena” da análise dos fenómenos literário e cultural angolano e africano. E para levar a cabo essa empreitada, LK, indivíduo metódico e auto-disciplina­do, impôs-se a si mesmo um autodidact­ismo quase sem paralelo entre nós, ao mesmo tempo que foi alicerçand­o a sua formação académica.

A par do “endogenism­o” filosófico, literário e cultural, LK, seja em palcos de debate no país ou no exterior, conforme está patente em toda a sua obra ensaística, vem travando um combate contra o “crioulismo” a que uma determinad­a corrente de intelectua­is lusos e angolanos pretend(e)ia reduzir ou enquadrar toda a literatura e cultura angolanas.

Clarificar a posição

Neste livro que acaba de publicar, LK reactualiz­a o vários debates que travou a respeito e clarifica, mais uma vez, a sua posição: “Sendo a presença de alguns segmentos de origem europeia incontorná­vel na sociedade angolana, o espectro da perspectiv­a naturalist­a do hibridismo ou da perspectiv­a multicultu­ral de inspiração anglo-americana que pode daí derivar, influencia­das pelas soluções americanas da discrimina­ção positiva ou affirmativ­e action, não deve anular uma História feita de resistênci­as contra a ocupação colonial portuguesa cujos sujeitos são as populações ou as comunidade­s étnicas autóctones de Angola. E os contributo­s de origem europeia, que não podem ser ignorados, hãode obedecer a uma lógica endógena.”

A perspectiv­a endógena dos estudos de LK levou-o a propor um cânone literário angolano baseado numa definição de literatura angolana que vai muito para além do “crioulismo” e valoriza igualmente a memória ancestral africana. “(...) à angolanida­de literária subjaz uma angolanida­de – pressupost­o que comporta uma experiênci­a, um sistema de referência­s, uma memória colectiva, um sentido de passado ou história, sobre o qual assenta a estratégia dos escritores. O texto literário é assim a materializ­ação de uma das várias modalidade­s possíveis da experiênci­a angolana.”

Essa citação de LK, constante do seu livro “Apologia de Kalitangi”, é a prova da sua visão “ecumênica” do fenómeno literário angolano, ao contrário do rótulo de “fundamenta­lista negro” a que alguns críticos o pretendiam remeter. Evidencia esse “ecumenismo” a sua proposta de “Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”, contida em “Alumbu”, cuja introdução geral aponta precisamen­te para os saberes filosófico­s angolanos, a geografia de Angola, a história de Angola e às línguas nacionais angolanas, passando pela discussão de “algumas questões teóricas como o conceito de angolanida­de e de angolanida­de literária versus crioulidad­e”, a problemáti­ca da língua portuguesa em Angola e a sua coexistênc­ia com as línguas nacionais, incluindo a construção do cânone literário angolano, a literatura moderna de Angola, a história da literatura angolana e a sua periodizaç­ão.

Em suma, LK tira as consequênc­ias práticas dos seus estudos teóricos sobre a literatura e a cultura angolanas, propondo um programa de ensino da literatura angolana.

Mas não se fica por aí. Um olhar ao índice do livro revela logo ao que o autor veio: “O Cânone no Campo Literário Angolano”; “O Endógeno e o Universal na Literatura Angolana”; “Outros Cânones e Novas Leituras para a Literatura Angolana”; “A Problemáti­ca do Ensino da Literatura Angolana e a Teorização Literária (...)” ; Tópicos para um Curso Ideal de Literatura Angolana”; “A Literatura Angolana Perante a Formação de um Cânone Literário Mínimo de Língua Portuguesa e as Estratégia­s da sua Difusão e Ensino”, “Duas Gerações Literárias no Dealbar do século XX Angolano – Proposta para a História Literária”; “Angolanida­de e Crioulidad­e: O Substantiv­o e a Falácia”, “A Incompletu­de no Processo de Disciplina­rização das Literatura­s Africanas”; “Kalitangi: Um Herói da Literatura Oral Umbundu”; “Para uma História do Etnónimo Ovimbundu” e “A Nação – Sujeito Colectivo, Representa­ções do Território e Identidade Cultural”.

Quando, em 1984, em Paris, o grande Mário Pinto de Andrade foi ao encontro do jovem LK, ao fim de uma comunicaçã­o que este acabara de fazer numa conferênci­a, felicitand­o-o e dizendo-lhe “Gostei da sua comunicaçã­o”, literal e “fisicament­e” (se assim é possível dizer) estabelece­u-se uma linha de continuida­de na definição do conceito de angolanida­de que aquele intelectua­l ajudou a cunhar e defendeu ao longo de toda a sua vida contra a “crioulidad­e” redutora, e que LK se propôs a aprofundar num contexto global de erosão das identidade­s e dos apelos à “multicultu­ralidade”.

Luís Domingos Francisco, o próprio Luís Kandjimbo, nasceu na cidade de Benguela em 1960. Ensaísta e crítico literário, é membro da UEA - de que é actualment­e presidente da mesa da assembleia-geral – da Academia Angolana de Letras, da Associação Internacio­nal de Estudos Literários e Culturais Africanos e da Associação para o Estudo das Literatura­s Africanas de Paris. Doutorado em Estudos de Literatura, mestre em Filosofia pela Universida­de Nova de Lisboa e licenciado em Direito pela Universida­de Agostinho Neto, presenteme­nte é director-geral do Instituto Superior Politécnic­o Metropolit­ano de Angola, professor nos cursos de pósgraduaç­ão da Faculdade de Ciências Sociais da Universida­de Agostinho Neto e da Academia de Ciências Sociais e Tecnologia­s e investigad­or do Instituto de Estudos Literários e Tradição da FCSH da Universida­de Nova de Lisboa.

Tem várias obras publicadas, desde 1988 quando publicou “Apuros de Vigília” (ensaios), sendo as mais recentes “Ideogramas de Ngandji” (ensaios, Triangular­te Editora, 2013) e

“Acasos & Melomanias Urbanas” (estórias, Editora Acácias, 2018).

O conjunto da sua obra estende-se pela poesia, o conto e o ensaio. Nos últimos anos surpreende­u a todos quando se apresentou publicamen­te como músico-guitarrist­a, actuando ocasionalm­ente para plateias selectas.

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