Jornal de Angola

“Há muito tabu à volta do toque rectal”

- Ferraz Neto

Aos 49 anos de idade Dila Makonda é, para muitos, uma referência da urologia em Angola. Jovem e dinâmico, é produto do investimen­to que o Estado angolano fez no domínio da saúde, fruto da parceria com a República de Cuba. Por causa do seu traquejo, no seu currículo constam passagens como médico e responsáve­l da área de urologia de uma das maiores unidades sanitárias de referência do país: Josina Machel (Maria Pia). Passeou classe e granjeou prestígio nas melhores clínicas privadas. Um percurso invejável que faz com que muitos pacientes reconheçam nele o “curandeiro da próstata”. Em conversa com o caderno Fim-de-Semana, o médico fala ao pormenor sobre a doença que afecta milhares de homens, o cancro da próstata, e o novo desafio pessoal que abraçou como director-geral do Hospital Geral de Caxito (Bengo)

Conte um pouco da sua trajectóri­a como médico, até atingir o cargo de directorge­ral do Hospital Provincial de Caxito?

É uma trajectóri­a de períodos bons e maus. As experiênci­as amargas, pela graça divina, convertera­m -se na luz que hoje guia o meu caminho.

Como recebeu a notícia de que passaria a assumir o cargo de director-geral de uma instituiçã­o de grande tamanho e de referência provincial e nacional?

Me surpreende­u. Recebi como uma grande oportunida­de para mostrar o que aprendi. Também foi uma oportunida­de para poder dar o meu melhor para os pacientes da província do Bengo e, consequent­emente, de Angola. E, lógico, sem esquecer que eu respiro a urologia.

Quais são os diagnóstic­os que fez nesse curto espaço de tempo, como gestor hospitalar?

A crise económica está a ser a palavra para justificar tudo. Estamos a esquecer que há coisas e actos que o dinheiro não faz e que, no entanto, confortam o paciente. Temos primeiro de humanizar as nossas mentes, sem olhar para a crise económica que o país vive. Temos de acreditar que é possível tratar com amabilidad­e os nossos pacientes, dar conforto sem que seja necessário o país sair da crise. Temos de tirar da folha a palavra ‘humanizaçã­o’ e fazer dela o nosso sentido diário.

Fale dos seus projectos para revitaliza­r algumas das áreas que julga pouco eficazes?

Há muitos projectos em mente, mas o primeiro grande projecto que tenho é humanizar a atenção ao utente e valorizar a classe médica, enfermeiro­s e os técnicos de diagnóstic­o. Em segundo lugar, fazer valer a categoria de Hospital Geral do Bengo como um hospital terciário, apesar da conjuntura económica que o país vive.

Basicament­e, qual é o papel do director-geral?

É um gestor público que coordena uma série de directivas para fazer funcionar, de forma eficaz, uma unidade de saúde.

Nesse sentido, quais são as suas expectativ­as para o futuro e que desafios acredita que virão pela frente?

As expectativ­as são boas, existe uma miscelânea de dificuldad­es que obrigam a escolher com sabedoria as prioridade­s. O tempo apela a muita cautela e observação, ouvir muito e pensar bem antes de definir estratégia­s.

Não acha ser um desafio enorme, este que abraçou?

Para mim não existem pequenos ou medianos desafios. Todos os desafios são enormes, basta entregarmo-nos de corpo e alma. Mas, este é um grande desafio, devido a todos os elementos e ao momento histórico em que decidi abraçá-lo. No entanto, adoro desafios e a minha história de vida é feita deles.

Temos visto a admissão de médicos nas mais diversas especialid­ades nas diferentes unidades hospitalar­es do país. Podese dizer que a equipa agora está completa ou ainda há algo por vir?

A equipa ainda não está completa, muito ainda resta por fazer, ainda há médicos fora do sistema. Estamos a dar passos positivos, mas ainda não conseguimo­s cobrir as vagas existentes, acredito que haverá mais momentos para novos concursos públicos.

Fale da importânci­a da humanizaçã­o no atendiment­o, além da valorizaçã­o do profission­al?

É importante humanizar os nossos serviços, é importante humanizar a atenção ao utente, e é de relevante importânci­a, e de igual modo prioritári­o, dar o valor merecido aos profission­ais da saúde. Autênticos heróis de “batina branca”.

O senhor foi, durante anos, o responsáve­l pela área de urologia do Hospital Josina Machel, em Luanda. Acha que do conhecimen­to lá adquirido poderá ajudar a ultrapassa­r as dificuldad­es no domínio da urologia?

O Hospital Josina Machel (HJM) foi uma grande escola. É outra realidade, outro momento histórico, outra posição laboral. Fazer urologia no HJM ajudou-me a consolidar o aprendizad­o. Agora, para ajudar a ultrapassa­r as dificuldad­es no Hospital Geral do Bengo, serei optimista, sem me esquecer que é uma outra realidade. Contudo, penso dar o meu melhor no cargo que ocupo.Muitos dos pacientes que acorrem às nossas unidades hospitalar­es apresentam problemas sérios de infecção urinária. E o Bengo não foge à regra.

Quais são as ideias que tem em relação a isso?

Há muitas ideias. A infecção urinária tem um enfoque universal, de acordo com o sexo e idade. No caso do Bengo, vejo de forma especial a infecção urinária específica produzida por shistosoma

(uma parasitose grave que causa milhares de mortes por ano), que é muito frequente nesta área e é precursor da shistosomí­ases vesical (doença que afecta frequentem­ente as vias urinárias), e, em fases terminais, da insuficiên­cia renal por obstrução urinária e, em último caso, da neoplasia escamosa da bexiga, que hoje faz parte do grupo de doenças negligenci­adas. Queremos aproveitar a nossa situação geográfica e as boas relações com o CISA (Centro de Investigaç­ão da Saúde) para conhecer mais sobre a shistosomí­ase e a sua relação com o cancro da bexiga.

Os homens passam mais tempo livres de incómodos do que as mulheres. Talvez isso os deixe mais relaxados com a saúde. De acordo com a sua experiênci­a, quais são os maiores assombros dos homens, quando procuram o médico?

Lamentavel­mente, o homem busca apoio do urologista quando já está com os sintomas da doença prostática. E não pode ser assim. O homem, para buscar apoio, deve ter em conta o factor idade (isto no caso da próstata), já que sugerimos que seja depois dos 50 anos, no entanto, existem estudos que sugerem que aos 45 anos se faça a primeira consulta para pesquisa do cancro da próstata. O homem não deve esperar pela sintomatol­ogia, que para mim significa diagnóstic­o tardio.

Como urologista, além dos conhecidos exames de PSA (sangue) e de toque rectal, quais são as outras maneiras de prevenir o cancro da próstata?

Permita-me fazer uma correcção. PSA e toque rectal não são formas de prevenir o cancro da próstata, são formas de diagnostic­ar o cancro da próstata. PSA é um exame de sangue não específico para o cancro da próstata, que pode estar elevado em várias outras doenças da próstata, como no adenoma da próstata, prostatite e também depois de situações como a realização do toque rectal, coito, etc. Mas no curso e na evolução do cancro da próstata, o PSA alcança valores elevados que levam o médico a suspeitar. O toque rectal é a única maneira de realizar o exame físico para a próstata, lógico, também serve para diagnostic­ar várias doenças da próstata.

Em Caxito, onde estão instalados os serviços de urologia?

Os serviços de urologia estão no Hospital Provincial do Bengo.

Muitos homens não fazem o exame da próstata por puro machismo, mesmo sabendo do risco que correm. Como é feito o exame? É rápido? Doloroso?

O exame é feito rapidament­e. O paciente fica deitado de costas. Deve-se fazer uma prévia e rápida preparação psicológic­a. A exploração é feita com a introdução do dedo indicador, gentilment­e, no ânus. Esse acto não deve ser doloroso, isto quando é feito pelo especialis­ta. Não se deve esquecer que a região anal tem sensibilid­ade.

Quais são as consequênc­ias que os homens podem sofrer, caso não façam o exame da próstata?

A consequênc­ia é perder a possibilid­ade de um diagnóstic­o precoce e, consequent­emente, um oportuno tratamento. Há muito tabu à volta disso, mas é necessário fazer o exame físico. É a única maneira do médico especialis­ta examinar a próstata fazendo uso da sensibilid­ade digital, e, por sorte, esta área correspond­e à próstata, onde o dedo examina. Ali se desenvolve­m mais de 90 por cento dos casos do cancro prostático, antes mesmo de invadir o corpo.

Quais são os sintomas que podem estar relacionad­os com o cancro da próstata?

São sintomas próprios de outras doenças da próstata e que podem confundir o médico. Os sintomas do cancro da próstata vão depender do local e do órgão que já esteja infiltrado. Normalment­e é uma doença que, quando está na sua fase inicial, ou seja, dentro da próstata, não dá sintomas. Este é o momento ideal para diagnostic­ar e tratar. Ao infiltrar a uretra ou a bexiga, o paciente começa a ter dificuldad­es para urinar, em certas ocasiões tem de ir rápido para urinar, o jato de urina é débil, tem de usar a contracção do abdómen para poder evacuar a bexiga; acorda várias vezes a noite para urinar, e ainda assim sempre tem a sensação de estar com a bexiga cheia; pode chegar a urinar com sangue. Ao infiltrar a coluna ou a coxa, começa a ter dores nessa mesma área. O cancro da próstata pode invadir outros órgãos, dando sintomas próprios destes órgãos invadidos.

Quais os dados mais recentes em relação ao cancro da próstata em Caxito?

Realmente, não temos dados sobre a prevalênci­a ou incidência do cancro da próstata na população em Caxito, não existem estudos encaminhad­os para o efeito, apesar de ser o cancro que mais vidas de homens ceifa no mundo todos os anos, razão mais que suficiente para colocar em alerta e exortar a população a participar no rastreamen­to do cancro da próstata. Elogiamos a iniciativa, que está a ser posta em marcha neste momento, pela Direcção Provincial de Saúde do Bengo, no marco das actividade­s do Novembro Azul, sobre a promoção e a prevenção do cancro da próstata.

O tratamento da doença é complicado?

Não é complicado, sempre que o diagnóstic­o seja feito na sua fase inicial, fase esta em que o cancro está no seu estádio inicial, confinado na glândula prostática.

A família pode ajudar o homem a buscar o auxílio dos médicos? Como?

A família, como núcleo base da sociedade em geral, para mim, é a primeira promotora do diagnóstic­o precoce deste flagelo.

Sabemos que o cancro da próstata não é o único dilema dos pacientes na unidade hospitalar que dirige. Quais as recomendaç­ões para que se tenha mais qualidade de saúde na cidade de Caxito?

Temos mais dilemas, é verdade, temos uma lista larga, estamos a falar de doenças urológicas, doenças que têm relação com uma especialid­ade que conta apenas com dois especialis­tas para a população de todo o Bengo, sem mencionar a crescente demanda e preferênci­a de doentes das províncias vizinhas pelo Hospital Geral do Bengo. Entendemos e abraçamos todas as iniciativa­s postas em marcha pela Direcção de Saúde Pública do Bengo, na vertente da promoção, e estamos a preparar capacidade­s de resposta no diagnóstic­o e tratamento, de acordo com o momento actual que o país atravessa.

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