História de amor
Muito tem mudado com a inserção da música religiosa em Angola nos últimos anos, o que é visível com a presença da categoria dedicada a este segmento nos mais importantes prémios de música e nos espaços da media. Cantores gospel são presença muito notada em actividades “seculares”, como os actos político-partidários, para imenso desagrado e reprovação dos "puristas" do gospel.
Lá vai o tempo em que a música evangélica em Angola, e no mundo, tinha essencialmente um enquadramento litúrgico, ou seja, estava voltada para os cultos. A realidade hoje é outra. Os músicos gospel promovem lançamentos públicos de discos, bastante concorridos, estão nas feiras de música, fazem shows mediáticos e as suas músicas tocam em todos os espaços das rádios e das televisões, espaços de músicas ao vivo e programas radiofónicos.
É caso para dizer que Deus saiu do circuito fechado e a sua mensagem está aí, à mão de semear. Tirando a devida consequência da mensagem veiculada pelas músicas gospel, dizemos que ninguém, no "momento devido", poderá invocar a inocência por ignorância. A palavra divina está aí e quem tem ouvidos para escutar, parafraseando a Bíblia, que o faça.
Grandes nomes do gospel angolano têm uma projecção na imprensa equiparada aos grandes da música secular. Guy Destino, Dodó Miranda, Bambila, Irmã Sofia, Lioth Cassoma, Miguel Buila, Chiló, Elisabeth Mambo, Quarteto Os Peregrinos e as bandas TDC são referência em todo o espectro da música angolana.
Nem sempre foi assim. Num país em que, após a proclamação da independência nacional, se adoptou um regime de férrea orientação ideológica marxistaleninista (comunista), em que as religiões eram consideradas o “ópio do povo”, não havia lugar para o gospel, que estava absolutamente confinado aos espaços das igrejas semi-clandestinas, semi-toleradas. Curioso é que muitos que na época eram os arautos do ateísmo, e que, contraditoriamente, tiveram uma formação cimentada à luz dos ensinamentos religiosos, tão logo houve a abertura do regime em 1991, transformaram-se em presença regular nas missas e cultos televisionados. Ainda está por se estudar devidamente este “milagre”.
E não é que o Estado laico é um dos maiores “requisi
tantes” dos préstimos musicais dos artistas gospel? Que ironia do destino! Por exemplo, actualmente, o coro da Igreja Metodista Central destaca-se como um habitué em actividades oficiais do Estado. O quarteto “Os Peregrinos” é um outro exemplo mediático da presença da música religiosa em actividades oficiais.
Fora dos coros, a música instrumental mais animada sente-se com os sopros presentes na Igreja Simão Kimbangu e no nkembo da Igreja do Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo “Os Tocoístas”. Esta denominação religiosa, aliás, foi o viveiro de Sebastião Matumona, conhecido senhor da guitarra angolana ao tempo do Ngoma Jazz.
Com as novas “liberdades e direitos” adquiridos na passagem para o multipartidarismo, em 1992 , surgiram as igrejas evangélicas brasileiras e, com elas, a música feita pelos seus pastores e crentes. Maioritariamente cantadas em português, rapidamente conquistaram os angolanos.
Com a conversão de gente das elites políticas e financeiras, e o acesso comprado aos espaços da media, essas igrejas evangélicas, que apregoam a doutrina da prosperidade, encontraram no gospel um canal privilegiado de difusão da sua mensagem e de proselitismo religioso. Naturalmente, as chamadas “igrejas tradicionais”, oficiais ou para-oficiais, introduziram toda uma panóplia de instrumentos musicais nos seus grupos corais e colocaram-se também na linha da frente da evangelização pela música. E outros países foram influenciando o gospel made in Angola: África do Sul, Estados Unidos da América, RDC. Com a mensagem do evangelho a ser espalhada para fora da igreja, vários artistas profissionais passaram a apostar seriamente na vertente gospel, introduzindo nos seus discos e nos seus espectáculos um ou outro tema gospel.
Na verdade, em última instância, para entender a emergência da cena gospel em Angola é preciso fazer uma análise, de recorte sociológico, que leve em conta os porquês do incremento da religiosidade do povo angolano. Seguramente, háde se encontrar um paralelismo com o agudizar da crise económica, financeira e de valores que grassa na sociedade e que potencia uma perspectiva escatológica da vida e do mundo, com Deus a ser o derradeiro recurso. E como as crises são geradoras de oportunidades, é bom de ver o surgimento de todo um showbizz centrado na música gospel, que envolve, além dos músicos, produtores, promotoras, agentes e vendedores.
O gospel no mundo
A palavra “Gospel” é uma aglutinação da expressão “God spell” do inglês antigo, que traduzido seria “Deus soletra”, mas que associado ao contexto significa “Boas Novas”, fazendo uma referência directa à função do evangelho bíblico, que trata da vinda do Messias (Cristo) ao mundo.
Esse tipo de música teve a sua origem na música cristã dos negros norte-americanos, o “Negro Spirituals”, no início do século XX. Tratava-se de uma música harmoniosa diversificada em várias vozes (coral), um solista, piano, órgão, guitarra, bateria e baixo, formando um pequeno conjunto musical.
Pretendiam, desta forma, manter uma união perfeita entre os fiéis e Deus, união essa considerada desgastada devido ao facto dos louvores serem entoados através dos hinos tradicionais. Com a sua popularidade, a música gospel ultrapassou os limites da igreja afro-americana, movimentando um mercado de milhões de dólares.
Inicialmente, esse estilo musical era formado por um coral. Com o tempo, a música gospel sofreu transformações, mas algumas comunidades cristãs ainda preferem manter a sua forma original. Os quartetos gospel, por exemplo, evoluíram de tal maneira que adoptaram uma “música gritante”, “danças exageradas” e “roupas extravagantes”. Foi nessa evolução que se inspirou o rock dos anos '50, com grandes nomes como Bill Halley, Chuck Berry e Jerry Lee Lewis.
Um grande divulgador deste género foi Elvis Presley. Chegou, inclusive, a ganhar o Grammy em três ocasiões. Ele amava, ao mesmo tempo, esse tipo de música, assim como o rock n “roll, o blues e o country. Dentre as suas produções destacam-se quatro discos gospel: “Peace in The
Valley” (1957), “His Hand in Mine” (1960), “How great Thou Art” (1967) e “He Touched Me” (1972). Ele é considerado por muitos como um dos maiores representantes da música gospel americana.
Outro nome é Mahalia Jackson, que actuou no funeral de Martin Luther King interpretando a música de Dorsey “Take My Hand, Precious Lord” (“Segure minha mão, Precioso Pai”). Outros são Clara Ward, Edwin Hawkings Singers, cantor do tão famoso “Happy Day”, e James Cleveland, reconhecido por muitos como o “Rei do Gospel”, não por ter uma voz melodiosa, mas pelo seu carisma e grande audiência. Ele foi o responsável por fundar a maior convenção Gospel do Mundo, a “Gospel Music Workshop of America”, que possui mais de 185 representações nos Estados Unidos.