Jornal de Angola

Onde quem tem casa de banho é rei

Mil milhões de pessoas ainda defecam ao ar livre. Em Angola, há zonas onde moradores não têm casa de banho, obrigando-os a fazer as “necessidad­es” no capim. Hoje, assinala-se o Dia Mundial da Casa de Banho

- César Esteves

Na localidade da Kilunda, situada na comuna da Funda, município de Cacuaco, em Luanda, vive-se uma realidade difícil de ser compreendi­da.

Das mais de 15 mil famílias aí residentes, apenas um número bastante insignific­ante dispõe de uma casa de banho no interior da sua residência. As pessoas preferem recorrer às matas para defecar e à sala e ao quarto para tomar banho. A falta de dinheiro para mandar cavar o buraco para a construção da fossa, aliada ao facto de a terra ser muito dura (é argila), é apontada, pelos moradores, como a principal razão que os desmotiva a construir um WC.

“É mais fácil construir o quarto, a sala e a cozinha do que o WC”, referiu o morador João Manuel. O custo para mandar cavar uma fossa, segundo contou, ronda os 20 mil kwanzas, valor que disse não estar ao alcance da maioria dos moradores da localidade, maioritari­amente camponesa.

Paradoxalm­ente, muitas famílias nessas condições dispõem, em suas casas, do serviço de televisão por satélite, vulgo parabólica, levando-os, em alguns casos, a gastar 3.295 kwanzas, por mês ou 39.540, por ano. Benjamim Afonso, por exemplo, gastou 158.160 kwanzas, em quatro anos.

A zona foi contemplad­a com a luz da rede pública.

Benjamim Afonso, um dos moradores que preferiu ter o sinal de televisão em casa, em detrimento de uma casa de banho, contou à reportagem do Jornal de

Angola que tomou tal decisão por não dispor de condições financeira­s para erguer uma. “Comprei a parabólica para a família não ficar muito isolada”, frisou.

João Manuel, cujos 70 anos de vida foram todos completado­s naquele bairro, revelou que o hábito de não construir casas de banho vem de longe e foi passando de geração em geração.

O ancião disse que os primeiros habitantes da zona deixavam, propositad­amente, de construir casas de banho, porque se sentiam mais confortáve­is a defecar nas matas ou nas montanhas.

“Mas, agora, estamos a ver que as casas de banho fazem muita falta”, admitiu.

O morador referiu que a prática de defecar ao ar livre tem provocado, sobretudo no tempo chuvoso, muitos casos de febre tifóide e diarreia na zona.

“As moscas, depois de poisarem nas fezes, transporta­m as bactérias para as nossas casas”, realçou.

Preocupado com a situação, uma instituiçã­o filantrópi­ca construiu, naquela localidade, várias latrinas para impedir o surgimento de algum flagelo.

“São poucas. Não chegam para toda a gente”, disse o mais velho João Manuel, acrescenta­ndo que muitas delas se encontram, hoje, inoperante­s, devido ao mau estado.

As famílias com casa de banho nas residência­s nem sempre aceitam ser solidárias com as que não têm, por entenderem que as que se encontram nessas condições são negligente­s.

Bater a porta de um vizinho com casa de banho, segundo contou o morador Manuel Tchukúlia, nalguns casos, para pedir ajuda, é considerad­o crime. “Aqui, quem tem casa de banho é rei”, aclarou.

Nas poucas casas onde se pode encontrar um WC, estes também clamam por melhores condições. Só a maior das necessidad­es levaria alguém a utilizar o lugar.

Devido ao acto de defecar ao ar livre, há três anos, o bairro foi assolado por um surto de cólera, que chegou a vitimar mortalment­e alguns membros da comunidade.

“Aproximada­mente dez pessoas terão morrido naquele período”, recorda Baptista João da Silva, presidente da Comissão de Moradores do bairro Kilunda.

O responsáve­l salientou que o bairro continua a registar, até hoje, por culpa dessa situação, muitos casos de febre tifóide, diarreia e paludismo. Baptista João da Silva confirmou a informação segundo a qual muitas famílias deixam de construir casas de banho devido à falta de dinheiro.

“O valor para a construção de uma casa de banho não está ao alcance de muitas famílias”, confirmou.

O mesmo problema verifica-se nos bairros “Terra Branca” e “Kuta”, adjacentes à Kilunda. A situação tem impedido muitas famílias de receber visita. “Os nossos familiares pensam duas vezes para vir aqui, por não termos casa de banho”, contou, a rir, um morador.

Não se sabe, ao certo, há quanto tempo existe o bairro Kilunda, mas alguns moradores falam em mais de 60 anos. A maioria das casas, um total de 600, é de adobe.

O custo para mandar cavar uma fossa, segundo contou, ronda os 20 mil kwanzas, valor que disse não estar ao alcance da maioria dos moradores da localidade, maioritari­amente camponesa. Paradoxalm­ente, muitas famílias nessas condições dispõem, em suas casas, do serviço de televisão por satélite, vulgo parabólica

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