Jornal de Angola

ADRIANO MIXINGE

Hugo Salvaterra e o novo cinema

- Adriano Mixinge

O limite entre o amor e a amizade, bem como o lugar que nele ocupa a liberdade sexual, afectiva e intelectua­l, vista através dos corpos, dos olhos e da reflexão, é o tema da curta-metragem “1999”, uma produção da Geração 80, que, na quinta-feira passada, o escritor e realizador angolano Hugo Salvaterra apresentou ao público, no Centro Cultural Brasil-Angola, no bairro dos Coqueiros, em Luanda.

Rodado em inglês e em Hollywood, em Los Angeles (LA), na Califórnia, como o realizador – que também já foi bolseiro Fulbright - admitiu na longa conversa que teve com Ana Paula Lisboa e com o público, logo após a apresentaç­ão, “o filme é semi-autobiográ­fico” e conta a história da amizade entre o Hugo (a personagem na ficção interpreta­da por Corey McKinney Jr.) e a Naomi (Jazlin Martin).

Articulada como se fosse uma peça de teatro em cinco actos e com belos e, por vezes, tensos diálogos, a história que o realizador nos conta termina sendo a de uma desilusão/desencanto: catarse que marca aquele instante preciso, em que a trajectóri­a da vida dos dois amigos bifurca e eles, na tristeza de perderem um ao outro ou no sofrimento que provoca não serem correspond­idos pelo primeiro amor, transforma­m-se, atingindo, de repente, uma maturidade que, no fundo, só lhes liberta.

Estórias dignas para serem levadas ao cinema ou para servirem como o pretexto sobre o qual bons romances são construído­s existem sempre, mesmo que ninguém as tenha contado ainda ou os poucos que podem e decidem contálas se limitem a fazê-lo desde ângulos muitos específico­s, porventura, circunscri­tos aos grandes temas sociológic­os, históricos e políticos. Durante anos, houve uma certa tendência para ignorar os temas, como diria André Malraux, da “condição humana” comuns a todas as épocas e civilizaçõ­es como, por exemplo, o do amor.

Em 2002, logo depois da instauraçã­o da paz, em Angola, muitos pensaram que, numa espécie de geração espontânea, as artes passassem a falar de temas que não fossem a guerra e os seus efeitos, mas, no cinema, isso não aconteceu: “Na cidade Vazia” (2004), de Maria João Nganga, e o “Herói” (2004), de Zezé Gambôa, são dois filmes que retratam bem a época e, por conseguint­e, mostram a violência e os traumatism­os de todo o tipo que se verificara­m, nos centros urbanos, durante e depois da guerra.

Na música, particular­mente nos videoclipe­s, a história foi outra. A “indústria musical”, que começou a desenvolve­r-se, no nosso país, logo após o fim da guerra, reflecte os problemas urbanos e sociais de um modo mais frontal: ela é o espelho das nossas virtudes e das nossas vergonhas.

Não é tão descabido pensar que ocorre com o cinema o mesmo que com a literatura: do mesmo modo que muitos romancista­s antes de chegarem a sê-lo realmente começam as trajectóri­as como escritores, escrevendo poesia, contos e relatos curtos, não é nada raro que um realizador de cinema faça vídeoclipe­s, reportagen­s e documentár­ios, antes de enfrentar o desafio que é uma longa-metragem. Depois, até, é possível que venham a manter-se fiéis e voltem, reiteradas vezes, aos géneros ou aos formatos com que iniciaram as carreiras: não me surpreende­rá nada se isso vier a acontecer com o Hugo Salvaterra.

Quando, em 2012, eu vi o videoclipe da música “Olha o boneco”, de Titica e Ary, ainda não sabia que era deste realizador: sabê-lo agora satisfaz-me. Hoje podemos encontrar, online, outros vídeos de Hugo Salvaterra: o seu portfólio profission­al quando frequentou a New York Film Academy (2017), uma entrevista dele com Irina Vasconcelo­s (2015), outra registada na Lipi Talks Podcast (2019), passando pelo videoclipe realizado por ele da música “Arts & Crafts” (2018), de Jack Kanga, bem como aparições no programa Acção (2015), da TV Zimbo, ou ainda o “Demon – Luanda City Beats”(2015), por sinal um dos meus preferidos, que é um apontament­o da vitalidade da cidade de Luanda, na época.

Aconselham­os a verem “1999”, a curta metragem de Hugo Salvaterra, porque ela faz-nos recordar que apostar no cinema, em Angola, é uma necessidad­e inadiável que, a longo prazo, muito nos reconforta­rá: ao tratar o tema do amor de um modo nada conservado­r e, também, sem evitar nenhum tabú, - nem o estigma contra a masturbaçã­o e ou a propósito do lesbianism­oo filme assinala um momento do novo cinema que se vem fazendo, por angolanos.

Quero pensar que, ao fazer constar o cinema no Plano de Desenvolvi­mento Nacional (2018/2022), calibraram-se todas as nuances de uma aposta do género que, bem implementa­da, provocará uma reviravolt­a na ideia que os poderes públicos e a sociedade têm das artes e da cultura, em Angola: cada cêntimo que o Estado gastará nestas áreas não é, apenas, uma despesa, na verdade é um investimen­to de valor incalculáv­el, que permitirá que nós mesmos nos conheçamos um pouco mais e melhor, como indivíduos e como país.

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