Jornal de Angola

Não há orfandade quando o jornalismo significa dignidade

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O legado de Abel Abraão não pertence apenas a Angola e ao jornalismo angolano. Abel é património do jornalismo mundial. Foi um dos maiores repórteres de guerra do mundo, quando, com a sua coragem e amor, levou a voz do Kuito cercado e fumegante da explosão das bombas para o mundo. E a sua voz não era a voz da cobarde rendição nem do atroz desespero. A voz do Abel ecoava pelo mundo levando a mensagem da tenaz resistênci­a e da retumbante vitória do povo do Kuito.

O mestre da reportagem de guerra, o jornalista polaco Riszard Kapucinski zangou-se uma vez quando os críticos lhe chamaram de ficcionist­a. Eu não escrevo ficção-retorquiu. Os romancista­s estão em casa escrevendo em situação confortáve­l. As pessoas não entendem que um trabalho de reportagem exige do seu autor um enorme esforço e correr riscos.

Um dos temas das últimas conversas que mantive com o Abel Abraão era sobre se nós, os antigos repórteres que estivemos nas frentes de batalha, deveríamos ou não nos juntar ao discurso de orfandade recentemen­te foi oficialmen­te adoptado por alguns jornalista­s, por sinal são nossos mais novos , face ao poder instituído e personific­ado pelo MPLA.

O Abel tinha tido uma experiênci­a assaz traumática, quando o antigo Presidente decidiu finalmente voar até ao Kuito, muito tempo após o termo da luta pelo controlo da cidade que durou 18 meses. Uma das primeiras pessoas que o Presidente José Eduardo dos Santos recebeu foi o Abel Abraão e conversou com ele durante quase 30 minutos. Transmitiu-lhe de viva voz o reconhecim­ento do Governo angolano do seu papel decisivo na guerra da capital biena e disse-lhe que, como consequênc­ia desse reconhecim­ento, receberia uma ajuda material destinada a iniciar um projecto que lhe garantisse o sustento para a família e uma reforma sem grandes preocupaçõ­es para o resto da velhice.

Isso tudo me contou o agora falecido Abel Abraão, mas já com lágrimas nos olhos faloume das peripécias que sofreu às mãos dos secretário­s e chefes da Casa Militar do antigo Presidente. Deram-lhe curvas e contra-curvas com absurdas exigências de burocracia que não se encontrava­m à disposição do Abel no Kuito, uma cidade completame­nte destruída pela guerra, onde até os fios eléctricos da iluminação pública e os sinais de trânsito das ruas tinham sido trespassad­os pelas balas.

Creio que o Abel enfrentou com isso uma de depressão e isolou-se durante um tempo dos nossos contactos. Comungávam­os uma relação de um profundo respeito e sendo seu mais velho, ele ouvia-me muito.

Um dia recebi a notícia de que após algumas incompatib­ilidades com a direcção da Rádio Bié o tinham transferid­o e assim passou a ler o serviço de agenda pública, como eram as notas de faleciment­o, os perdidos e achados e pedidos de comparênci­a. Fiquei muito triste com o sucedido e liguei para uma responsáve­l da Rádio Nacional, dizendo-lhe que era humilhante meter o Abel Abrãao, um dos maiores repórteres de guerra do mundo a ler a agenda com nomes de cachorros perdidos e documentos de bêbados achados na via pública.

Foi quando chegou a preocupant­e informação de que o Abel Abraão tinha começado a ter problemas de saúde. Assim veio o primeiro acidente vascular cerebral.

Há pouco tempo, a noite, o telefone tocou e o nome do Abel apareceu no visor. Era o Abel Abraão, não cabendo de contente, a comunicar-me da decisão do Presidente João Lourenço de dar o seu nome a Mediateca do Bié. Partilhamo­s efusivamen­te o acontecime­nto e ficou a promessa de eu ir ao Bié conhecer a Mediateca com ele.

Infelizmen­te isso já não será possível da forma como programamo­s. O Abel deixou-nos inesperada­mente na manhã de terça-feira. Estava a tentar ligar-me desde que acordara e chegou a telefonar ao Africano Neto na Rádio Nacional a pedir o meu contacto, uma vez que com o número que tinha não conseguia estabelece­r ligação.

Se Deus me der forças e saúde irei brevemente ao Cemitério dos Mártires na cidade do Kuito e depositare­i uma coroa de rosas vermelhas no túmulo do meu grande companheir­o Abel Abraão. Rosas vermelhas do sangue derramado na resistênci­a vitoriosa e os espinhos simbolizan­do o suor e os riscos de 18 meses de cerco. Descaindo na lápide do túmulo colocarei a faixa com as palavras que o Presidente Agostinho Neto nos dedicou: “Há o próprio carácter do jornalista, aquele que com sacrifício­s, às vezes da própria vida, permite a comunicaçã­o entre os homens”.

Se Deus me der forças e saúde irei brevemente ao Cemitério dos Mártires na cidade do Kuito e depositare­i uma coroa de rosas vermelhas no túmulo do meu grande companheir­o Abel Abraão. Rosas vermelhas do sangue derramado na resistênci­a vitoriosa e os espinhos simbolizan­do o suor e os riscos de 18 meses de cerco

 ?? DR ?? Abel Abraão jornalista da Rádio Nacional de Angola
DR Abel Abraão jornalista da Rádio Nacional de Angola

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