Jornal de Angola

Por entre gruas e guindastes jaz a memória do 4 de Fevereiro

- Miguel Gomes

A antiga Casa de Reclusão Militar, para além de prisão, foi depósito de escravos e fez parte da primeira linha de defesa da cidade de Luanda.

Ao lado de um dos terminais do Porto de Luanda, ornamentad­o com enormes guindastes cinzentos-escuros, vedações, pré-fabricados que servem de base administra­tiva para várias empresas, está a antiga Casa de Reclusão Militar (ou Fortaleza de São Francisco do Penedo). Em escombros, entaipada por obras travadas pela falta de dinheiro e apertada entre a era do petróleo, a era colonial e a luta de libertação nacional.

A transforma­ção da antiga fortaleza em museu temático foi anunciada em Dezembro de 2018. Por estes dias, no local, encontramo­s apenas dois ou três trabalhado­res e um segurança. A obra de restauro deveria estar concluída em 18 meses mas, neste momento, os trabalhos estão paralisado­s. São visíveis algumas benfeitori­as, mas nada de muito relevante – o edifício continua a parecer uma ruína, à espera da machadada final.

A antiga Casa de Reclusão Militar, para além de prisão, foi depósito de escravos e fez parte da primeira linha de defesa da cidade de Luanda. A posição vantajosa garantia, ao contrário dos tempos modernos, uma enorme vista em plano aberto sobre o Oceano Atlântico. Ali também estiveram detidos elementos do famoso Processo dos 50.

Classifica­da como Património Histórico Nacional, em 1992, as obras de restauro e apetrecham­ento foram entregues à empresa de construção Mota-Engil Angola. O orçamento para a empreitada chega aos 37 milhões e 785 mil kwanzas.

Durante a cerimónia de entrega da empreitada, ainda em 2018, Carolina Cerqueira, que na altura era ministra da Cultura, disse que a recuperaçã­o seria o “início de um programa que assenta na recuperaçã­o do património físico do imóvel, além da sua recuperaçã­o histórica e memorial”, medida necessária porque “as novas gerações estão ávidas de conhecer a longa História do país.”

Só que há imagens que contam histórias profundas.

Mais do que a retórica, remetem-nos para o cinema e para a facilidade em criar uma narrativa a partir dos pormenores: a Casa de Reclusão Militar está apertada pela vida de um país agarrado ao petróleo. Parece um exagero, mas talvez não seja.

Onde antigament­e corria o mar calmo da praia da Rotunda, agora estão um sem-número de camiões à espera de serventia. Cheira mais a gasolina e a outros fumos e odores industrial­izados do que propriamen­te a lagostas e areias finas. No meio deste cenário urbanoindu­strial estendem-se os espíritos de prisioneir­os angolanos que ali estiveram apenas por desejar um país.

Foi por desejar um país que centenas de guerrilhei­ros com pouquíssim­a instrução militar se organizara­m para causar um tumulto de origens nacionalis­tas. Foi uma surpresa para a maioria da sociedade colonial, agarrada à propaganda e à afirmação de superiorid­ades sem base factual. No dia 4 de Fevereiro de 1961, pouco tempo depois do massacre da Baixa de Cassanje e pouco tempo antes do 15 de Março, foi um levantamen­to popular que deu início oficial à luta armada de libertação.

O objectivo do 4 de Fevereiro passava por soltar uma série de presos políticos que estavam espalhados pela Casa de Reclusão Militar, Cadeia de São Paulo e outros estabeleci­mentos prisionais. Os restantes alvos foram a antiga Emissora Nacional (que naquele tempo era estação de rádio oficial portuguesa), os Correios e esquadras policiais.

Tudo leva a crer que a preparação envolveu elementos importante­s das Igrejas Católica, Metodista e Tocoista.

Agostinho Miguel Inácio “Kisekele”, um dos sobreviven­tes do levantamen­to, recordou, em 2017, em entrevista ao Jornal de Angola, que o Padre Manuel das Neves avisou o grupo de guerrilhei­ros sobre uma suposta fuga de informação que poderia colocar em causa o objectivo final.

“Ele orientou que tivesse tudo preparado e que fizéssemos o ataque ainda hoje ou amanhã, porque se falhasse, eles iriam agir. Isso serviu de motivação para que o acto tivesse lugar no dia 4 de Fevereiro”, contou Kisekele.

Nos dias após o ataque, a reacção do regime colonial foi dura e obsessiva. Intensific­aram-se as perseguiçõ­es políticas, teve início a guerra de libertação, o Governo português reforçou os processos de ocupação do território e encetou um programa de reformas económicas e políticas para tentar reverter o quadro de grande pressão nacional e internacio­nal.

Para Agostinho Miguel Inácio “Kisekele” o maior ganho do 4 de Fevereiro “foi a abolição do indigenato em Angola”.

O indigenato garantia a existência legal do trabalho forçado, uma estratégia para contornar o fim da escravatur­a e garantir a exploração de mãode-obra barata. O 4 de Fevereiro é um marco porque demonstrou a inevitabil­idade da Luta Armada para desmobiliz­ar o regime colonial.

Algumas décadas depois, o cresciment­o do Porto de Luanda, motivado pela necessidad­e de exportar crude em bruto, ao mesmo tempo que a doença holandesa e dependênci­a do petróleo empurrava o país para a preguiça e altivez fajuta da importação de tudo e mais alguma coisa, desde tomate de má qualidade, até galinhas-rijas sabese lá de onde, quinquilha­rias de gosto duvidoso e maquinaria­s de toda a espécie e feitio. Está aqui o resumo da economia do país nos últimos 40 anos.

Até a alusão à doença holandesa faz uma curiosa intersecçã­o com o período colonial, exemplo maior de que a História não se muda apenas com gritos, palavras de ordem, mãos a bater no peito e novas bandeiras. Há um rio frondoso que corre profunda e estranhame­nte debaixo dos nossos pés.Enasentran­hasdasmemó­rias colectivas.

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KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO
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DR Fortaleza São Francisco do Penedo e antiga Casa de Reclusão Militar no ano de 1933

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