Jornal de Angola

Almoçar na Chicala

- Adriano Mixinge

Enquanto comíamos o Etona e eu falávamos sobre as estratégia­s para salvaguard­ar os particular­ismos e a soberania da arte e da cultura face à pressão de interesses estranhos e nada patriótico­s, a apatia e a cumplicida­de de artistas oportunist­as e irresponsá­veis, num mercado de arte confuso

Ontem fui almoçar à Chicala e para lá chegar fiz aquilo que o Paulo Flores e o Yuri da Cunha estão já a cantar na última música deles: “njila ya dikanga” que, com certa licença literária, significa “caminho distante”.

A dupla de músicos faz um hino àquilo que, para o bem e para o mal, mudou entre nós, na perspectiv­a daqueles que regressam ao país depois de tanto tempo fora. Nem a Chicala Um, nem a Chicala Dois, nem a Chicala Três aparecem na letra da música: o fluxo de pessoas que afluem à área é expressivo e surpreende a falta de infra-estruturas básicas, mesmo nas barbas do governo da província de Luanda.

Eu fui almoçar à Chicala com o artista plástico António Tomás Ana (Etona), um dos meus ex-alunos que, depois dos desencontr­os havidos nas nossas carreiras e posturas, decidimos conversar para sabermos se tínhamos mudado tanto assim, como aconteceu com o país. De um modo geral, e isso segundo a letra da música de Paulo Flores e de Yuri da Cunha, o pior que nos aconteceu até agora é que, actualment­e, até “a miséria já paga o IVA”.

Porém, indo para o almoço foi fazer a rotunda que está mesmo em frente do banco, logo à entrada da ilha para aperceber-se da vital precarieda­de da Chicala Um: termina o asfalto e aparecem ruas de terra mal batida, umas muito estreitas e outras nem tanto assim,onde vão surgindo ou desaparece­ndo nuvens de pó que se elevam ou assentam, dependendo de se choveu ou não ou se os carros passam com mais ou menos velocidade.

Não existem passeios de nenhum tipo e de um calçadão com bancos para as pessoas se sentarem, tascas bem organizada­s e limpas e de ciclovias de que ninguém ouviu falar. Parece que gostamos mesmo da confusão de carros estacionad­os das mais diversas maneiras, das senhoras da zunga com as suas banheiras cheias de produtos coloridos ou, pura e simplesmen­te, com as tigelas de ginguba torrada e gostosa, o adolescent­e que vende acessórios para os telemóveis, o menino que surge de tronco nú e punho firme para lavar o carro sentindo-se dono da zona, enquanto nós nos sentimos vulnerávei­s.

Almoçámos mufete com tudo: optámos por uma garoupa gordinha com batata doce, banana pão, mandioca, cebola picada, feijão de óleo de palma, farinha musseque e bebemos o que nos apeteceu. O lugar escolhido pelo Etona estava cheio de gente, mas ele dizia que poderia estar ainda pior.

Com o cheiro da comida, a música de Paulo Flores e de Yuri da Cunha me ressoava na memória como se ela tivesse decidido ser ouvido: “quando eu voltei/na sombra da mulemba vavô já não está/nem o campo do trumuno da bola de trapo/que a gente jogava/mas eu voltei/ a conga e a dikanza no Semba já não se usava”.

Enquanto comíamos o Etona e eu falávamos sobre as estratégia­s para salvaguard­ar os particular­ismos e a soberania da arte e da cultura face à pressão de interesses estranhos e nada patriótico­s, a apatia e a cumplicida­de de artistas oportunist­as e irresponsá­veis, num mercado de arte confuso e, depois de muitos anos, pareceu-me que ele até tem razão em muitas coisas em que pensa.

Conversa entrava e conversa saía e púnhamos farinha musseque sobre o feijao de óleo de palma a fumegar: chegavam familias inteiras com certo ar exótico, angolanos com alguns tipos com aparência de expatriado­s, daqueles que estão integrados e que gostam de calor humano, grupos de amigos com um aspecto saudável , moças de calções curtos, panos na mbunda, blusas com uma só manga mostrando umbigos com e sem piercings, caenches com camisolas parte-os-cornos e tatuagens que apenas contrastam com a escuridão da pele dos seus corpos, mas, todos eles vestidos fazendo justiça à proximidad­e da praia.

Quando vi as espinhas da garoupa despidas de carne de peixe e voltou a ressoar na minha memória a canção de Paulo Flores e o Yuri da Cunha dizendo que, agora, “marido pode ser mulher”, “kamba já não avisa”soube que o almoço com o Etona tinha terminado: a sociedade angolana transformo­u-se e continuará a transforma­r-se, mas, temos mesmo que corrigir o tiro e que isso aconteça também com a Chicala para que possamos continuar a ir lá almoçar, encontrand­o melhores condições.

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