Carnaval de volta às ruas
É chegado o Carnaval. Pelas ruas das capitais de todas as províncias do país, veremos, a partir de hoje, desfilar grupos e foliões, manifestando através de danças e cânticos os hábitos e costumes, crenças e valores em que acreditam, de forma espontânea. E isso é assim há muito tempo. O historiador britânico David Berminghan, com uma vasta e respeitada obra sobre Angola contemporânea, assistiu ao Carnaval de 1987, a convite do Governo da então República Popular de Angola. O académico viria a escrever, anos depois, um ensaio sobre a celebração popular. “A festa encontrava-se profundamente imbuída dos magníficos símbolos da história, passada e presente, de Angola”, sublinhou no texto.
Os registos oficiais indicam que Angola começa a dançar o Carnaval entre os anos 1920 e 1930, mas já se festejava ao ritmo de vários estilos musicais. “A aclamação popular do Carnaval é tão antiga como a própria cidade, apesar de o motivo da celebração ter mudado ao longo dos séculos”, confirma David Berminghan, ou, como lembra o autor de uma obra de referência sobre o Entrudo, Roldão Ferreira: “[os colonizadores] já nos encontraram a dançar e a brincar o Carnaval”. Com a massemba, os populares animavam-se na capital, manifestando orgulhosamente os seus hábitos e costumes. Dáse então mais atenção à dizanda, à kabetula e à kazukuta. Os autóctones desfilavam com pés descalços, debaixo de um sol escaldante e com meia dúzia de colonizadores sentados num pedestal para assistirem aos negros a passar.
Num dos seus períodos mais conturbado, de 1930 a 1963, o Carnaval é dançado ao ritmo de canções que criticam o sistema colonial, mesmo sendo já, nesta altura, a festa coordenada pelos postos administrativos. Ainda neste primeiro período, em 1944 e 1945, dá-se então a primeira paralisação, por causa da perseguição do governante Norton de Matos. De 1961 a 1963, houve a segunda paralisação devido à Luta de Libertação Nacional. O Carnaval foi proibido quando a administração reconheceu tardiamente o seu potencial enquanto meio de transmitir mensagens contra a ordem vigente ou de promover aspirações nacionais. Logo depois, entrámos para o segundo período do Carnaval que vai de 1964 a 1975, no qual as canções também eram de intervenção porque se continuava a lutar contra o colonialismo.
De 1975 a 1977 dá-se mais uma paralisação do Carnaval, motivada pela reconstrução após a independência. E houve o Carnaval da Vitória, que se deu no dia 27 de Março de 1978, uma data que coincide com a retirada do país das tropas sul-africanas. A realização do Carnaval nesta data foi anunciada no dia 14 de Janeiro de 1978, no grande comício realizado na quintaavenida, no município do Cazenga, pelo então Presidente da República Popular de Angola. António Agostinho Neto pediu para os protagonistas da festa procurarem explorar mais das suas origens e da própria identidade nacional. “Ao nosso Carnaval havemos de voltar". Entretanto, surge o terceiro período, que vai de 1978 a 1992, que eram igualmente canções de intervenção e crítica apesar de já termos vencido o colono. Mas depois do multipartidarismo, em 1992, era preciso voltarmos à primeira fórmula, que era inserir o Carnaval dentro do calendário litúrgico.
No seu livro "Carnaval: A Maior Festa do Povo Angolano", Roldão Ferreira, compositor que cresceu e viveu no histórico Bairro Operário, apesar de ter nascido no Lobito em 1940, explica que o Entrudo teve sempre a sua maior força em Luanda, sobretudo na faixa litoral, ou seja, entre os ilhéus. Algo que o historiador britânico pôde confirmar e contar. Apesar disso, a primeira edição do Carnaval em Luanda, realizada a 27 de Março de 1978, teve como vencedor, ao contrário do que se esperava, o União Operário Kabocomeu, do Sambizanga, fundado a 2 de Janeiro de 1952, que dançou kazukuta. Na altura, muitos acreditavam que o título iria para os grupos da faixa litoral, dominada pelos ilhéus, mais habituados a estas manifestações.
Na segunda edição, a expectativa dos ilhéus voltou a esmorecer. O vencedor da festa, realizada em 1979, foi o União Feijoeiros do Ngola Kimbanda, do município da Samba, hoje extinto. O grupo era formado por oriundos de kaluandas, pessoas que tinham como principal actividade a pesca. Só na terceira edição é que os ilhéus conseguem se afirmar, através do União Mundo da Ilha, fundado em 1968, por João Ventura, em companhia de nomes como Maria Manuela, Valeira de Almeida (que começou a fazer os primeiros batuques do grupo), Marta da Conceição, Maria Custódio e Madalena Lourenço. Nesta edição, realizada em 1980, na altura já sob a denominação Carnaval da Vitória, o União Mundo da Ilha conquistou o seu primeiro título, o que o inspirou e até hoje é um dos de maior referência do Carnaval de Luanda com 13 títulos. Este ano, espera reconquistar o troféu que perdeu em 2017.
O União 10 de Dezembro, do bairro do Prenda, distrito da Maianga, fundado a 5 de Janeiro de 1973, é igualmente um dos históricos do Carnaval da capital e conta já com vitórias em quatro edições, nomeadamente 1991, 1999, 2002 e 2006. Tendo já participado em 35 edições, o União Kiela, fundado a 1 de Janeiro de 1948, já venceu cinco edições, sendo em 1985, 1986, 1989, 1990 e 2009.
Assim como Roldão Ferreira, muitos são os especialistas a defenderem que o Mundo da Ilha, assim como muitos outros “gigantes” do Carnaval, são parte fundamental da história da festa do povo, a ser preservada para as gerações vindouras. O jornalista Jomo Fortunato, que escreve há duas décadas sobre história da música popular angolana, crítica literária e eventos culturais em geral, sublinhou há dias, neste jornal, que "a investigação universitária deve estar próxima do Carnaval para o conhecimento da história e do perfil artístico das grandes figuras do passado do Carnaval", defendendo que "os temas sobre o Carnaval devem ser propostos pelos professores universitários para teses de pós-graduação, na sua dimensão sociológica e artística, motivando o surgimento de títulos bibliográficos".
E nunca foi tão urgente estudar o nosso Carnaval. Já numa entrevista em 2015, ao Rede Angola, Roldão Ferreira, reconhecia que se continuava a "preservar a tradição de todos os anos descermos à Marginal para brincar e dançar o nosso Carnaval" ao ritmo da kabetula, massemba e da kazukuta, mas que também olhava "com profunda preocupação as influências que esta festa popular tem sofrido, muito por conta da globalização", pelo que se torna urgente "publicar a história do nosso Carnaval" para que não se esqueça "os factores tradicionais, senão deitamos tudo a perder".
Depois de ver o Carnaval, em 1987, o académico inglês David Birmingham, que leccionou no Reino Unido, mas também em diversas universidades de vários países africanos, foi categórico no seu ensaio sobre a festa: “(...) é, acima de tudo, a celebração de tenacidade e resistência históricas ao longo de cinco séculos, em que os colonizadores absorveram e subjugaram povos, culturas, religiões e rituais de todo o mundo, tornando-os parte integrante do Carnaval muito característico de Luanda”. E é por isso que não podemos “deitar tudo a perder”.