O mito do Pan-arabismo
O Pan-arabismo, enquanto ideologia que levou à congregação de todos os países e interesses árabes sob uma sombrinha que visava lutar contra inimigos comuns, começa a ceder lugar ao realismo político. As lideranças árabes sempre fizeram da unidade árabe uma espécie de cavalo de batalha que levava a encarar as dificuldades de uns como problemas de todos. E implicava que o inimigo de um ente árabe ou de um interesse árabe, como por exemplo a causa palestiniana, fosse visto como inimigo de todos. Essa foi a ideologia que esteve sempre na base da gestão do conflito que opunha os países árabes em geral a Israel e, em particular entre este último, aos palestinos. Um dos pontos altos desse exercício de unidade entre os árabes ocorreu pouco depois da chamada Guerra dos Seis Dias, que tinha irrompido entre os dias 4 a 10 de Junho de 1967, envolvendo Israel e os países vizinhos, Egipto, Síria e Jordânia.
Depois da derrota dos árabes, a Liga Árabe promoveu uma reunião, em Agosto, na cidade de Cartum, capital do Sudão, que passou para a História como a “cimeira dos três não”, em que se negava a paz, a negociação e o reconhecimento do Estado judaico. Esta cimeira reforçou, naquela altura, a unidade árabe e o sentimento de Pan-arabismo na medida em que, entre as várias resoluções, tomou decisões drásticas, grande parte delas, hoje, completamente descontextualizadas. Entre as decisões tomadas naquela famosa “cimeira dos três não” constou, por exemplo, que os “Estados árabes ricos em petróleo” prestariam ajuda financeira aos Estados que perderam a guerra, que “os palestinos deviam recuperar toda a terra da Palestina”, acto que implicava a destruição de Israel.
Passados, inicialmente, dez anos, os egípcios foram os primeiros a quebrar o mito do Pan-arabismo, quando Anwar el Sadat, Presidente daquele país, foi a Camp David rubricar os Acordos de Paz com Israel para a devolução do Monte Sinai e normalização das relações bilaterais. Depois seguiu-se a Jordânia, em 1994 e dali em diante a diplomacia israelita tem trabalhado não necessariamente para vencer o mito do Pan-arabismo, mas apenas fazer prova de que pode coexistir com os países árabes.
Embora os países árabes, na sua maioria, sempre condicionaram qualquer passo na direcção do reconhecimento e normalização das relações com Israel aos avanços que as negociações para a criação de um Estado soberano e independente palestiniano iria conhecer, essa perspectiva tem dado lugar ao Realpolitik, ou seja à diplomacia baseada em considerações práticas.
O Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, tem apregoado, com algum exagero é verdade, que Israel partilha com os países árabes laços que a ausência das relações diplomáticas e comerciais não impede, nem condiciona.
A estratégia de identificação do Irão como o inimigo comum de Israel e dos países árabes, explorado até à exaustão pelas autoridades israelitas, com uma mão amiga americana, tem servido de alguma maneira para trazer juntos países que outrora tinham como ponto principal dos seus laços a inimizade irreconciliável.
Em 2019, Israel e Chade restabeleceram as relações diplomáticas, um passo que foi visto como o primeiro que se seguiria aos outros, junto de países africanos com alguma influência no mundo árabe, nomeadamente Mali, Mauritânia e Sudão.
O mundo árabe despertou com muita surpresa quando soube do encontro secreto entre o Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e o líder da entidade de transição do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan, na localidade de Entebe, Uganda, sob os auspícios do Presidente Yoweri Museveni, no início do mês de Fevereiro. As duas individualidades anunciaram ao mundo a intenção de gradualmente avançar para a normalização das relações bilaterais, numa altura em que as autoridades sudanesas, ainda que de transição, pretendem ver o país retirado de uma série de listas internacionais que complicam a sua inserção no concerto das nações. O general al-Burhan preside ao chamado Conselho de Soberania do Sudão, um grupo de 11 membros que administra o país até Novembro de 2022, ano em que serão realizadas as eleições gerais e entregue o poder a um civil.
Começa a cair em cascata toda a estrutura montanhosa que servia como fortaleza impenetrável da unidade árabe, com gestos que começam a deixar boquiabertos os palestinos que fizeram sempre da sua causa o elemento agregador dessa união. Aliás, as críticas mais pesadas surgiram no interior do Sudão, com alguns rostos conhecidos a insurgirem-se contra a iniciativa do general al-Burhan que, rapidamente, reagiu dizendo que o apoio do Sudão à causa palestiniana não diminui com o encontro.
O ex-Primeiro-Ministro sudanês Sadek al-Mahdi, líder do partido político de Umma, condenou o encontro, alegando que o mesmo “não visa defender o interesse nacional do Sudão, nem o interesse árabe por nosso intermédio e nem o interesse palestiniano”. Amjed Farid, famoso activista sudanês, disse que Burhan não tem mandato do povo sudanês para “oferecer alguma coisa a Netanyahu”.
Enfim, uma coisa parece mais do que óbvia: o Pan-arabismo definha como um castelo de cartas, numa altura em que os Estados e monarquias árabes pretendem, com algum pragmatismo, acautelar interesses geopolíticos próprios e regionais. O Pan-arabismo continua ainda no papel como um trunfo político e diplomático que, por um lado, leva os países árabes a reforçar a unidade, mas por outro a encarar os problemas regionais com realismo. Esperemos pelo tempo para provar até que ponto a ideia do Panarabismo não resta apenas como um mito, cedendo lugar a outros interesses, entre os quais a necessidade do reforço de uma aliança para fazer face à crescente ascensão do Irão, a urgência da eventual normalização das relações com Israel, apenas para mencionar estes. Na verdade, o tempo tem jogado a favor desta realidade, em que, cada vez mais, Israel tende a normalizar as relações com os países árabes, e a causa árabe traduzida no Pan-arabismo prevalecer apenas como um mito.