Qual o principal impacto da Covid-19 em África?
Quase quatro meses depois do surgimento do novo coronavírus, e apesar dos números relativamente baixos de casos positivos e mortes até agora ocorridos nos países africanos, mantêm-se os receios de um provável desastre humanitário no continente. Antes do pico brutal do vírus nos Estados Unidos, por exemplo, a OMS predisse que o próximo epicentro da pandemia, depois da Europa, seria África. Isso não aconteceu, pelo menos por enquanto, o que não quer dizer que não possa acontecer. Segundo algumas estimativas verdadeiramente dantescas, se isso acontecer, existe uma possibilidade de as mortes na região resultantes da Covid-19 puderem vir a ser contadas em cifras de milhões e não apenas milhares de pessoas. Tal possibilidade foi contrariada, no princípio deste mês, por um grupo de 50 renomados intelectuais africanos. Numa declaração sobre o impacto do novo coronavírus na região,os referidos intelectuais consideram esse alarme como a “segunda vaga do afropessimismo”, numa comparação com a provável segunda vaga do novo vírus, para a qual os cientistas, em todo o mundo, têm avisado. Para os subscritores da declaração, esse tipo de previsões “malthusianas” diz mais sobre os seus autores do que sobre a realidade em África. Os referidos intelectuais assinalam que, até agora, os receios sobre o impacto do coronavírus em África “carecem de justificações concretas e documentadas”. A verdade é que a primeira atitude dos observadores extra-africanos é duvidar da fiabilidade dos números anunciados pelas autoridades sanitárias locais. O pretexto mais “amistoso” é que os países africanos estão a realizar poucos testes. É verdade, mas, se não há testes, como ter a certeza de que o vírus “já está espalhado” pelo continente africano? Tudo o que se disser a respeito disso, num ou noutro sentido, é pura especulação. Como leigo que sou a respeito desta matéria, atrevo-me a sugerir que os factores que poderão justificar os baixos números referentes ao novo coronavírus em África sejam fundamentalmente os seguintes: primeiro, o rápido fechamento das fronteiras decidido pela maioria dos Estados do continente (mais cedo do que muitos países europeus e do que os EUA); segundo, o reduzido fluxo de turistas, comparativamente com outras regiões (assinalo, argumentando a contrario, que os quatro países africanos com mais casos do novo vírus são alguns dos que recebem habitualmente um maior volume de turistas); terceiro, e embora ainda sujeito a uma confirmação e explicação cabal por parte da ciência, o factor demográfico (a baixa média etária do continente). Há uma circunstância que não pode, em boa justiça, ser minimizada: a experiência africana em lidar com endemias e outras crises sanitárias, o que, certamente, levou as autoridades dos diferentes países a agirem rapidamente, ao contrário das lideranças de alguns dos países mais desenvolvidos e com sistemas de saúde mais estruturados. O facto foi reconhecido nos últimos dias por importantes meios de comunicação ocidentais, como a NBC e a Economist. Como sublinhou a ministra angolana da Saúde, Sílvia Lutucuta, à Euronews, “ninguém pode retirar o mérito aos países africanos na reacção à Covid-19”. Entretanto, os 50 intelectuais africanos que subscreveram a declaração acima referida não têm dúvidas: os cenários catastróficos antecipados, principalmente a partir de fora, sobre os prováveis efeitos, em termos sanitários, do novo coronavírus no continente como um todo “podem, de facto, ter um impacto negativo na economia, agravando a avaliação de risco já desfavorável aos países africanos antes da Covid-19, com os investidores em total incerteza”. Esse pode ser, pois, o principal impacto do vírus em África. Por isso, os países africanos tentam negociar ao mesmo tempo com os seus principais credores internacionais e as instituições financeiras mundiais, para encontrarem formas e mecanismos para aliviar os dramáticos efeitos da Covid-19 sobre as suas economias. Segundo o economista guineense Carlos Lopes, ex-Secretário-Geral adjunto da ONU, o continente precisa, para esse feito, de 200 mil milhões de dólares. Na realidade, essa solução, embora crucial, é também emergencial. África precisa de alternativas verdadeiramente estruturais, como as preconizadas na declaração dos 50 intelectuais africanos sobre o assunto. Entre as diferentes soluções sugeridas na referida declaração, destaco a necessidade de abandonar o modelo económico baseado na exportação de matérias-primas, sem qualquer valor agregado; total reformulação dos sistemas de saúde pública (para os assinantes do documento, por exemplo, a evacuação médica das elites e não só “um caso de injustiça social”, como de “irracionalidade económica”); promoção de uma real união económica dos países africanos e de um espírito de solidariedade que implique um profundo conhecimento da realidade, em especial nas áreas rurais, assim como uma nova e consciente ligação do continente e as suas diásporas. Seremos capazes disso? *Jornalista e escritor