Proteger as famílias mais pobres dos efeitos do Covid-19
Li há dias, com muito agrado aqui mesmo, no Jornal de Angola, um belíssimo texto do dilecto amigo Archer Mangueira, governador do Namibe, onde elencava algumas ideias de como o país deve proceder para enfrentar esta pandemia da Covid-19, na sua área de especialidade, a gestão macroeconómica. Não há muito tempo defendia, junto do Víctor Silva, a necessidade de a plêiade dos líderes de opinião da nossa praça vir a terreiro, e com caneta no papel, debitar da sua justiça como nos havemos de safar desta camisa-de-onze-varas que nós, como todo o mundo, “estamos com ela”. Seguindo o exemplo do Dr. Archer, “tomo a liberdade”, como ele diz, de complementar às suas ideias e contribuir com algumas pistas na área em que me sinto à vontade: a protecção social.
Grande parte das nossas famílias vive do trabalho diário no sector informal. A sua jorna na zunga, venda informal, táxi etc., dá-lhes apenas para, no fim de cada dia, comprar o alimento para o jantar e para o matabichoealmoçododiaseguinte,àsvezesnemisso.Nãotêmcontanobanco nem poupança; a sua perspectiva económica vai só até ao dia seguinte.
Essas famílias têm que ir à rua cada dia, senão passam fome. Dali que, neste contexto de isolamento social, estão perante um dilema deveras lancinante: ou morrem de fome ou arriscam-se à contaminação pelo coronavírus. Têm também medo de apanhar a doença, mas a fome aperta mais; é por isso, mais imediata. Esta é a razão pela qual as vemos a deambular pelas cidades, apesar das medidas decretadas pelo Estado de Emergência.
Para que elas fiquem em casa, precisam, com urgência, de um plano de protecção social eficaz, profissional e consonante com esta medida de prevenção do Covid-19. O Executivo, na resposta à pandemia, já lançou um conjunto de medidas de protecção à pequena e média economia real, aquela que impacta a vida dos cidadãos no dia-a-dia. Por sua vez, a Comissão Multissectorial que gere a resposta ao Covid19 gizou um conjunto de medidas imediatas para acudir estas famílias mais vulneráveis, por via da disponibilização de 350 mil milhões de kwanzas para a distribuição de cestas básicas, assim como apelou à solidariedade dos empresários e sociedade civil.
Porém, a natureza das medidas de prevenção do Covid-19 - o isolamento social - impõe desafios às acções de solidariedade social inéditas até agora em operações do género: as pessoas não devem aglomerar-se sequer para receber ajuda. Assim, as distribuições de bens que vemos na Media acabam sendo contraproducentes, pois violam o “fique em casa” e podem ser focos de contaminação, como aliás já aconteceu na África do Sul. Há por isso que ser criativos e encontrar formas de fazer chegar a ajuda necessária às famílias necessitadas de forma não presencial. Para isso, vemos dois caminhos.
Primeiro, deixar de lado a distribuição de bens e, em vez disso, entregar dinheiro vivo por via de transferências sociais monetárias. Sabemos que isso é uma grande diferença da experiência que o país tem das ajudas humanitárias, em que eram importadas pelo PAM e UNICEF grandes quantidades de bens alimentares, que, depois, eram distribuídas em grandes ajuntamentos de pessoas. Mas isso, neste contexto do Covid-19, já não pode ser. Os próprios parceiros internacionais precisam de ser convencidos disso.
Em segundo lugar, fazer das transferências sociais monetárias o principal instrumento de protecção social, pelo menos nesta fase. O Executivo já tem, nesta matéria, experiências muito encorajadoras e, pelo que sei, está a redesenhar um projecto similar que tinha com o Banco Mundial para precisamente suprir essa necessidade. As transferências sociais monetárias ajustam-se perfeitamente às condições impostas pelo combate ao Covid-19 pelo seguinte: são mais eficazes, pois o dinheiro chega às famílias beneficiadas e elas decidem que alimentos preferem; logisticamente, são mais simples, pois não há necessidade de transporte de grandes volumes de alimentos por longas distâncias e através de fronteiras. O dinheiro pode ser feito chegar electronicamente e, mais importante para estes tempos desafiadores, dispensam as aglomerações de pessoas que são de evitar.
Haverá que reforçar ou criar condições para que estas famílias possam ir a um banco, abrir uma conta e ter um cartão multicaixa. Mas, como sabemos que há municípios que não possuem bancos e nenhuma comuna tem, haverá que ser criativo aqui também e engajar instituições financeiras comunitárias da sociedade civil, como as caixas comunitárias da ADRA, o Kixicrédito e os canais financeiros de gestão de fundos das igrejas - as únicas, até onde chega o meu conhecimento, que atingem a totalidade do País. Aliás, um dos passos essenciais nesse processo seria o engajamento e mobilização de uma parceria horizontal com os actores do terceiro sector (as ONGs e outros actores de desenvolvimento comunitário) e as igrejas.
Logo após o período de Estado de Emergência, será preciso assistir essas famílias na reintegração no sistema produtivo, com créditos de fomento às pequenas actividades de rendimento familiar. Nisso, o engajamento dos assistentes sociais e profissionais de desenvolvimento comunitáriodoPaís.ÉavezevozdasONGsdoterceirosectorenquadradas peloscompetentesdepartamentosministeriais:oMASFAMUeoMinistério da Agricultura e Pescas. Aí, os créditos anunciados pelos ministérios da Economia e Planeamento e Finanças, teriam não só um terreno já preparadoparaserviremefectivamenteamicroeconomianascomunidades e famílias, como serviriam de alavanca para aquilo que são dois objectivos muito caros ao Executivo: a diversificação da economia e apoio efectivo ao pequeno e médio empreendedorismo. Assim faríamos desta crise uma oportunidade para a redução efectiva da pobreza. * Sociólogo da Comunicação