O essencial e o fait-divers
O país anda dividido entre o risco iminente da transmissão comunitária da pandemia do coronavirus e a necessidade de observância de medidas de prevenção que travem o avanço da doença, quando nos aproximamos da meia centena de casos, muito inferiores às previsões oficiais que indicavam podermos estar, por esta altura, acima dos milhares de episódios.
A maior parte dos casos positivos registados provam a velocidade de contágio da pandemia, pois a partir de dois casos importados, os famosos “caso 26” e “caso 31”, os números subiram através da transmissão local. Daí para a transmissão comunitária vai um passo muito curto, sobretudo se se tiver em conta as zonas de residência e o nível de contactos, que já fizeram com que três áreas fossem fechadas a entradas e saídas, com todos os constrangimentos que isso acarreta para os moradores.
A prorrogação do Estado de Emergência tem-se mostrado essencial para que os números não se aproximem tão rapidamente das falhadas previsões, sendo o isolamento social, comprovadamente, uma das principais armas de combate à pandemia da Covid-19, apesar dos prejuízos que podem provocar na economia e no tecido social, já de si em agonia antes mesmo da crise sanitária.
Por isso, a prevenção é mesmo a nossa maior salvação porque é sabido que o nosso sistema de saúde não dispõe de condições de atendimento e de tratamento, porque ele próprio está doente e em coma há muitos anos.
Tenho defendido que a actual crise deve servir para se repensar o país, porque depois da pandemia a vida já não será a mesma e nada melhor do que desenhar o futuro pós-Covid. Na saúde, por exemplo, esta seria a oportunidade para recriar um sistema nacional com uma rede de cuidados e assistência, meios humanos, técnicos, infra-estruturas e dignificação dos profissionais mais ajustados à nossa realidade. Mas uma política consensual, a partir de um diálogo abrangente, inclusivo, sem as guerras de exclusão e de interesses que se assistem num sector que não deve actuar apenas tipo bombeiro, esquecendose da máxima de que “é no prevenir que está o ganho”, como aliás, está a provar esta situação da Covid.
A divisão está, também, no facto de as medidas de prevenção terem de conviver com outras de desconfinamento para atenuar os efeitos negativos na economia e no plano social das famílias e cidadãos. Por isso é que continuamos a ver muita gente nas ruas, pelo facto da maioria viver do informalismo no qual nem sempre se consegue o mínimo para garantir uma refeição diária, deixando o Governo no dilema de deixar as pessoas morrerem da doença ou de fome.
O país não se pode dar ao luxo de parar, por maior que seja o perigo - e é- , da pandemia do coronavirus. A crise sanitária veio juntar-se à crise económica que o país e o mundo já vinham a registar há algum tempo. E com o alivio das medidas, muitas empresas já retomaram a actividade e regista-se, com orgulho, a resiliência de muitos que mesmo com metade da força de trabalho, estão a manter níveis de produção, provando que, querendo e com políticas correctas, é possível, sim, derrubar o lobby das importações, substituindo-o pela produção nacional, sobretudo da nossa dieta alimentar. Tomara que as prometidas ajudas ao sector empresarial não se percam nas gavetas da burocracia ou no ego de quem tem a responsabilidade de as concretizar.
A situação social tem-se vindo a agravar pelo aumento do desemprego, a perda do poder de compra e o chamado “exército de invisíveis” cresce a cada dia, porque além daquelas franjas da população reconhecidamente vulneráveis, a quem o Governo tem distribuído alguma ajuda pontual, como as cestas básicas e as transferências monetárias, somam-se, agora, pessoas que tinham alguma estabilidade, mas estão a perder rendimento e a entrar para a mendicidade.
Este problema deve ser encarado com a seriedade que requer pelos reflexos que pode atingir não apenas na condição social das famílias e cidadãos, mas até mesmo no plano político porque há eleições dentro de dois anos e seguramente que quem governa quer manter-se no poder para cumprir o seu programa de governação, mostrar obra e não dar palco e terreno àqueles que, desde o exterior, não escondem o desejo de recuperarem a procuração de herança que terão recebido para serem os donos e senhores de Angola e dos angolanos.
Um problema que não deve ser ignorado ou trocado por faitsdivers de arrestos ou de mudanças das regras com o jogo a decorrer, como alguns pretendem, desviando a atenção do que é realmente essencial.
As adversidades fazem parte do exercício do poder e não se pode ter a pretensão que todos os nossos problemas podem ser resolvidos de uma só vez, até porque a herança, a verdadeira, temse mostrado bem pior que o mais pessimista podia imaginar, e não é apenas dos cofres vazios.
A realidade impõe uma concertação política abrangente, onde haja um pacto entre todas as forças e a sociedade, sobre os grandes desafios do país e as suas soluções. Estaria aí uma oportunidade para um restart do país. E nesse começar de novo, outra vez, cabe tudo, incluindo a mudança das regras de jogo, se esse for o entendimento maioritário.
Dar espaço a “bocas de aluguer” que, ainda, num passado recente encabeçavam coros de choros e lamúrias, passeatas e manifestações a pedir a perpetuação do “status quo” é não conhecer, efectivamente, a realidade do país, das suas populações e instituições e querer reintroduzir o cortejo da bajulação, a que se deve, também, assacar responsabilidades pelo atraso na concretização das mudanças inauguradas com o novo ciclo político, em Setembro de 2017.