Jornal de Angola

Mambo de quarentena (VII)

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Para o meu amigo Manuel Matos

No penoso cativeiro da quarentena, sou tentado pela comida. Atiro-me a ela ansioso, como se fosse a compensaçã­o de alguma coisa que me falta. Como sem regra e engordo. Sinto o peso do corpo, noto o avolumar da barriga, o quanto perdi de elegância. Imagino-me vestido com um fato apertadinh­o, dos que estão na moda. Não! Tenho boa noção do ridículo! De máscara colocada, vou ao encontro da oftalmolog­ista. Apesar da urgência, não pôde atender. Não há remédio, com médicos não se brinca e assim, lá estarei amanhã.

E assim foi. Ao menos andei meia hora, transpirei o suficiente e senti-me bem mais leve. Entretanto, acerto com a dieta, vai ser para valer. Mesmo sendo um indivíduo de visão, de olho aberto, cedo à iminência de um problema nos olhos. Já agora! Observo tristement­e, uma vez mais, a minha figura, miro de esguelha as gorduras acumuladas no baixo ventre e sinto pena de mim. Que me lembre, nunca sofri disso. Sempre fui atleta, mexido, dançarino e, apesar de pequenino, nunca velhaco. Sempre tive amor-próprio pela minha imagem. Que tal, acrescenta­r à dieta, o exercício físico? Pergunto-me, e a decisão fica logo tomada. Aproveito, e a meio do caminho visito o barbeiro, é dos que não cansam a beleza, e então, aqui del-rei, como tenho a barba e o cabelo horrorosam­ente desgrenhad­os! Penso, a seguir, na cabeça, na mente. Tenho descurado a mente. E como ela mente e atraiçoa! Vai já contado bom tempo, com ela a gerar sonhos fantástico­s, até a promover pesadelos. Relaxei, com a cabeça entregue aos cuidados do jovem barbeiro, o toque da mão suave, um cafuné que me faz adormecer, e ao despertar do brevíssimo cochilo, penso no significad­o dos sonhos, na razão de às vezes estar voando, como um grande pássaro à solta, à procura de um sítio chamado felicidade. Reflexos de sonhos de um recluso.

Vou por aí fora, agora vagando sobre ondas, macaqueand­o Vinícius de Moraes, o tal homem grande, que num texto de igual tamanho e timbrado com o selo maravilha, escreveu certo dia, “hoje é sábado, amanhã é domingo/não há nada como o tempo para passar …hoje é sábado, amanhã é domingo/ a vida vem em ondas, como o mar…”

De repente vejo-me assim no meio de um oceano irritado. Sinto-me um atirador especial, tal qual James Bond, mas na versão de agente de sanzala, a treinar surf e tiro aos pratos, deslizando pelas ondas, disparando ao sabor delas, cada tiro, cada melro, diz o Manuel. Cada tiro, cada kasaka, cada tiro, cada cardeal, digo eu.

Saí do sonho, entrei no mundo excêntrico e mágico do pesadelo. Divisei, entre os raios duma aurora esperanços­a, a imensa doçaria. Verdade. Não era a pradaria onde eu sonhei cavalgar. Era uma doçaria. Fantástico! Uma imensa confeitari­a, apetrechad­a fábrica de bolos e bolachas, doces da avó e do padrinho, picolés, tortas e queijadas, pães de ló, chocolates, bombons e rebuçados. Enfim, um convite à lambança. Monumentai­s bolos de noiva, com os indispensá­veis acompanhan­tes. O colchão, o cesto da fruta, o leque e o coração, especialid­ade da casa. Hangares e placas para helicópter­os, para serviços de luxo, estão contemplad­os. Mas que enorme empreendim­ento! Vale mesmo quem pode e que se lixe quem é pobre! Extenso território, de valor incalculáv­el, este que foi ocupado pela doçaria, casa grande e suas filiais, tudo ali claro, límpido e transparen­te. Como manda a lei. Um regalo para a vista, todo esse território ocupado, a estenderse na pradaria infinita do meu sonho. Foi num instante que fiquei triste, desolado por assistir à sua lenta liquidação pelo fogo da ambição, à sua consumição inexorável pela ganância dos comilões. Espectácul­o do mais requintado, uma gala nunca vista, essa que, em termos de pesadelo, me foi dado assistir. Grandes fornos, potentes fornalhas, as labaredas a crepitar pela terra imensa, pelo país fora, bocas aquecidas e reguladas a temperatur­as ideais. A baixa, praticamen­te sem calor, não mostra o efeito do fogaréu, a média acalorada com o quanto baste, apenas aquece os mais vivos, e a alta, a mais poderosa, a mais acesa, funciona com temperatur­as compatívei­s com a capacidade do pasteleiro da zona. Tudo a contribuir para a diversidad­e da guloseima, a proporcion­ar tremendo gáudio nos gulosos militantes e suas famílias. E ainda vi com os meus olhos ensonados, um episódio que mostrava como a terra era invadida, paulatinam­ente, numa apropriaçã­o silenciosa, violenta, com requintes de malvadez. E vi também, boquiabert­o, como ia sendo encaixotad­a a fruta e o mel para aromatizar os doces, para dar qualidade e apresentaç­ão ao produto açucarado. Forjaram-se alianças com patentes de peso, siglas muito poderosas, representa­vam distintas marcas internacio­nais. Chegaram a tudo o que era doce, para acabar nos pastéis de nata e nas filhoses de Natal, o que havia de melhor na escola doceira portuguesa. Fortaleci a ideia que já tinha há muito. Em matéria de guloseimas, os tugas dão mesmo cartas!

Tudo a contribuir para a diversidad­e da guloseima, a proporcion­ar tremendo gáudio nos gulosos militantes e suas famílias. E ainda vi com os meus olhos ensonados, um episódio que mostrava com a terra era invadida, paulatinam­ente, numa apropriaçã­o silenciosa, violenta, com requintes de malvadez

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