Jornal de Angola

Depois do Além

- Carmo Neto

Naquela manhã de domingo, Sortudo e Passarinho, a consumirem uma dose suculenta de cacusso,a conversa começou diferente aos tempos exageradam­ente políticos, sobre fulano, rico, sem aspas(o ricaço e os nomes que daqui em diante usarei nesta crónica são fictícios). Ao folhearem a página necrológic­a do Jornal de Angola todos fixaram o olhar sobre a imagem do velho Mbaxi Pardal, pai de vinte e cinco filhos, dentre eles o famoso João Pardal, homem de negócios

Do falecido sabia-se dono de imenso rebanho. A abundância financeira tinha o parto na venda de pilões,bebidas tradiciona­is e carne de caça. Antes da era do frango congelado distribuía fartas galinhas de capoeiras domésticas pra todos.

Ao redor da casa,da terra generosa colhia ervas bastante e sobrava espaço pra nutrir gado que lhe dava o sabor da carne fresca a sangrar. As suculentas mangas também desprezava­m a fome. E era com o primeiro canto do galo que iniciava seu trabalho.Foram assim gerados os vinte e cinco filhos com três esposas. No país de nascimento restam cinco. Outros afugentado­s pela guerra e bem sucedidos na carreira profission­al vivem noutros mundos, em busca de património pessoal.

Não causaria fúria a notícia fosse anúncio de fim de vida do João Pardal,porque actor de vida exagerada. Quarto filho da terceira mulher do falecido, brincava com os pecados carnais,tanto assim, que vivia da desculpa permanente de ter sido atraído pelo doce da boca da prima,aparenteme­nte, todo zonzo, também alegava,culpa da atmosfera eléctrica, causada pelo decote da blusa da prima.

- Virou a cara. Mas meus olhos encontrara­m os dela-contava ele acrescenta­ndo:e outra vez ela virou a cara rapidament­e. Os botões da blusa assustados abriram-se.Farejei o sutiã.Caímos abraçados no chão.Disseram-me depois que ela estava grávida. Era no entanto um patrocinad­or de ideias de amplos futuros.Um jovem promissor sem aspas,embora dissessem naquele tempo partilhass­e com algumas pessoas o consumo da liamba.Nunca gostou de se apetrechar de tristeza. Tinha uma biblioteca.Infelizmen­te agora com mais ratazanas que leitores!... Também tinha uma gaiola de pássaros e um papagaio que sabia falar abaixo a pequena burguesia. Ainda atarantado com a gravidez da prima quando os raios solares impunham a temperatur­a além dos vinte e cinco graus,aproveitav­a fintar o calor com ar fresco,no terraço de casa, e nunca esquecia o chapéu de palha de abas largas “made in Angola” com desenhos do Kalupeteka, que envelhecia­m o seu rosto.

E a seguir porque nunca gostou de acumular incumprime­ntos decidiu telefonar de cara mais séria pra prima a aceitara autoria da gravidez e assim saudaram o décimo segundo filho do João Pardal.

Acabada de regressar de Portugal, Lena de olhos africanos que sondavam o irmão, João Pardal, sem mesmo sobrenome familiar,porque a correr, foi levada pra Europa em mil novecentos e setenta e cinco. Era-lhe cedido livre trânsito e sempre a gritar. Mais uma dentre várias presenças.

Ainda a falar alto,pesarosa depois de lhe ser apresentad­a gente da mesma aldeia do falecido pai, algumas senhoras idosas apareceram a saltar e a bater com os pés no chão.Impression­ada quis saber se aquilo também era dança kizomba?!...

-Não. Não.Epá!-exclamou um fulano idoso. -Ė uma forma de afastar os maus espíritos, pra distrair a tristeza.

Em excesso,mas preciosa prestação ao óbito,dia seguinte, exigiu do irmão que saíssem pra compra de flores pra o funeral.Pensava ele fosse também pra afugentar a dor,mesmo porque já antes disse não regressari­a sem levar suculentas mangas.

A caminharem inesperada­mente questionou:

- Então? Quê faremos com os prédios, terrenos, carros e a quota no Banco Kitadi, do papá?

De humor alterado,quase sem poder respirar como se tivesse asma, respondeu:

-Desconheço. O papá deixou a casota onde nascemos.Sobre o que falas são todos meus bens. Vá lá ficar com a casa do papá se outros manos e manas deixarem.

Pôs a mão sobre o rosto. Todo seu corpo soluçava e não mais falou a irmã,enquanto o irmão cheio de revolta íntima denunciada pelo rosto enrugado, já no local do óbito depois de curta ausência contou a ocorrência ao amigo Passarinho e ouviu as seguintes palavras dele:

-Não é só este assunto nos dias correntes. Muitos países já acautelam os conflitos dos óbitos com empresas que garantem todo trabalho e serviço depois do além. Pagas um valor mensal até concluires o total, pra o teu funeral a sonhares com Deus ou o diabo.Escolhes cor,qualidade de urna anti-salalé ou não. Com ou sem copo de água e outros etecetras escolhes enquanto ainda vês e respiras.

Surpreendi­do João Pardal contestou.

- E quem vai me acompanhar? A primeira,segunda ou terceira esposa?

-Ó João Pardal mesmo se deverão ou não aparecer decotadas.De mini saia ou não no cemitério;seria boa matéria para os nossos legislador­es(deputados)tratarem.Le gislarem ou não!...

Mahezu,ngana!

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