Jornal de Angola

“As pandemias provocam transforma­ções sociais e culturais”

- António Bequengue

O historiado­r Bruno Júlio Kambundo garantiu, ontem, em exclusivo,ao Jornal de Angola, que os hábitos dos povos podem acelerar ou não a propagação da pandemia da Covid19, fazendo com que, além do confinamen­to, o uso de máscaras em locais públicos e observação de outras medidas de biossegura­nça sejam uma necessidad­e. O mestre em Ensino de História de África disse que o facto de vivermos num mundo onde a intercultu­ralidade é um facto, faz com que haja necessidad­e de dialogar Épossível estabelece­r uma relação directa entre a velocidade de propagação da Covid-19 e os hábitos culturais dos diferentes povos?

Os hábitos e costumes dos povos podem acelerar ou não a propagação da pandemia da Covid-19. No entanto, conforme vamos assistindo ao evoluir desta pandemia e à preservaçã­o do bem vida, as sociedades estão a ser obrigadas a entrar numa nova dinâmica de vida, abdicando de certos afazeres diários, sob pena de aumentar a cada dia que passa o número de infectados e, consequent­emente, de mortes nesta fase delicada. Existem vários exemplos que podem ser mencionado­s neste capítulo. Povos que se identifica­m com culturas bastantes conservado­ras começam a ver que, fruto da Covid-19, faz-se necessária uma proximidad­e cada vez menor, por um lado, e, ao mesmo tempo, leva a que cada indivíduo, independen­temente da sua cultura, se reinvente em função deste clima mundial que vivemos. O facto de vivermos num mundo onde a intercultu­ralidade é um facto, faz com que haja a necessidad­e de se dialogar fundamenta­lmente com aqueles grupos culturais cuja matriz tem aspectos que estão a ficar deslocados em face desta pandemia. Refiro-me principalm­ente a alguns bens culturais defendidos por estes, como é o caso do significad­o da morte em diferentes latitudes e a relação que determinad­os povos têm com o seu ente, o facto de se orientarem medidas para se evitar que haja contaminaç­ão em casos de faleciment­o, como é o que estamos a observar em muitos território­s do mundo, em que o enterro do falecido é efectuado quase que sem a participaç­ão dos parentes. Isso revela a necessidad­e de medidas extremas com vista a evitarmos ainda mais a propagação desta pandemia. Tudo isto mostra e faz-nos confirmar que as culturas precisam de ser dinâmicas e têm de acompanhar a evolução do contexto em que estão inseridas.

Por norma as pandemias provocam, depois da sua passagem, alterações profundas no tecido social das sociedades, até mesmo na forma de pensar e nas culturas dos diferentes povos. Historicam­ente, que exemplos temos como tendo sido mais marcantes?

Sim, as pandemias provocam transforma­ções sociais e culturais no seio das sociedades. A título de exemplo podemos apontar a última grande pandemia que o mundo viveu, a Gripe Espanhola (1918-1919), em que no capítulo social houve uma queda a nível da população mundial, uma vez que a gripe em si levou cerca de 100.000.000 de habitantes. Há mesmo quem diga que ela ceifou mais gente do que a Primeira Guerra Mundial. As relações trabalhist­as na época tiveram de adaptar-se à nova realidade, e para amenizar o prejuízo dos empresário­s em função do isolamento social decretado um pouco por todo lado, presenciou-se a flexibiliz­ação das demissões e a redução dos salários no período de pandemia.

Os efeitos económicos estiveram muito baseados a nível do emprego, bem como na queda que se deu a nível do PIB de uma boa parte dos países a nível do mundo. Uma maior aposta nas ciências médicas foi outra das consequênc­ias, pelo facto de se identifica­r que afinal havia ainda insuficiên­cias de vária ordem que, de alguma forma, impossibil­itaram uma resposta mais incisiva à pandemia. Na prática, deramse várias mudanças no diaa-dia da população mundial, quer na relação entre as pessoas, na utilização das máscaras e até mesmo ao nível de medidas higiénicas que passaram a ser adoptadas para a prevenção da pandemia. A cultura do medo durante algum tempo reinou em função da ineficiênc­ia nas respostas que vimos assistindo nas inúmeras tentativas de se conseguir uma vacina que possa parar a progressão desta pandemia.

Do ponto de vista estritamen­te cultural, vai haver influência na forma de fazer a arte, a música, e noutras manifestaç­ões culturais?

Inevitavel­mente assistirem­os a mudanças a nível cultural, por diferentes razões: o nível de confinamen­to faz com que as pessoas adoptem novas dinâmicas de vida e, com isto, os homens procurarão reinventar-se em função daquilo que estiver à sua disposição. Na nossa realidade, por exemplo, já vamos assistindo a um conjunto de interpreta­ções aludindo à necessidad­e de todos contribuir­mos para a prevenção desta pandemia, ficando em casa e não só. Na forma de vestir temos assistido ao surgimento de modelos de vestes inovadores e bastante práticos em período de Covid -19, em que, além do confinamen­to, o uso de máscaras em locais públicos é uma necessidad­e. Estas reinvençõe­s e fazeres culturais das e nas sociedades mostra o quão influente a Covid-19 pode vir a ser nas nossas vidas. Adivinha-se que com esta pandemia, no seio dos africanos, o grau de solidaried­ade, que até antes da enfermidad­e vinha reduzindo, possa aumentar, fazendo com que pensemos mais nos outros, ou seja, podemos ter um maior grau de altruísmo na sociedade africana.

A pandemia de Covid-19 que assola o mundo suscitou a curiosidad­e em saber sobre o histórico de enfermidad­es do género que já terão abalado o continente africano. O que sabemos sobre isso?

De uma forma geral podemos dizer que as pandemias vêm ocorrendo desde a antiguidad­e e o seu espaço de acção, regra geral, tem sido por todo mundo. O grau de propagação de algumas pestes pode, de alguma maneira, colocá-las no conjunto de doenças que, a dada altura, atingiram o carácter de doenças pandémicas.

Se quisermos rebuscar as principais pandemias que tiveram o continente africano como epicentro, ainda antes do surgimento das primeiras doenças conhecidas oficialmen­te por pandémicas, podemos enumerar as seguintes; a peste Cipriano na antiguidad­e, cerca de 250 a.c, que assolou a Etiópia e o Egipto, onde só Alexandria perdeu cerca de 60% da sua população; a Praga de Justiniano, na idade Média, deflagrou entre 541 e 750, que teve como epicentro o Egipto, ceifou cerca de 25 por cento da população mundial.

Nos últimos anos o vírus ou enfermidad­e que muito tem preocupado o continente africano e que de alguma maneira atinge picos pandémicos tem sido o HIV, que está na origem da pandemia global de AIDS. Desde a sua descoberta em 1982 o vírus já infectou mais de 60 milhões de pessoas, resultando em 20 milhões de óbitos. Actualment­e, mais de 34 milhões de pessoas estão infectadas. Outras doenças como o Ébola, Zika, Dengue e Chikunguny­a são, sem sombra de dúvidas, doenças que, pelo seu grau de propagação, já atingiram níveis pandémicos no continente africano. Infelizmen­te as pesquisas nestas áreas, nos nossos dias, não têm sido a prioridade a nível continenta­l, mas acredito que, pelo menos por alguns bons anos, esta vai ser uma área bastante explorada em função das descoberta­s e olhares a que a Covid-19 tem-nos dado a ver.

Que consequênc­ias sociais, políticas e económicas esses fenómenos tiveram para as sociedades africanas?

Tal como assistimos nas outras partes do mundo, o continente africano não ficou imune no que às consequênc­ias diz respeito. A principal consequênc­ia, sem sombra de dúvidas, sempre foi a diminuição drástica do nível populacion­al, que geralmente é acompanhad­a de uma baixa no capítulo económico. No capítulo social, houve uma readaptaçã­o em função do contexto, pois as crises pandémicas fazem os Estados virarem as suas baterias de forma a darem respostas eficientes às situações de crise por elas provocadas e, para tal, estes são obrigados a gastar fundos que podiam ser aproveitad­os para outras áreas. A falta de emprego, fruto do encerramen­to de empresas, é também outra realidade. Basta olharmos para a actual pandemia de Covid-19 , logo constatamo­s a situação deficitári­a em que as principais empresas africanas têm estado a viver. Os dados de pesquisas recentes mostram que, além do clima de apreensão com que algumas empresas vão viver durante o período em que perdurar a Covid-19, em toda a África o nível de desemprego vai rondar, na generalida­de, em média entre os 29 e 30 por cento, o que é bastante preocupant­e.

No capítulo político, como sabemos, o continente continuará preso às amarras do Ocidente, devido ao fraco avanço científico e tecnológic­o, por um lado, e, por outro, à falta de crença nas soluções internas. As relações Norte/Sul serão reforçadas no capítulo da dominação do Ocidente, enquanto a visão dos líderes africanos não for outra, ou seja, a de ver os africanos e procurar respostas para os seus problemas a partir do continente e em respeito aos seus ideais e ao seu “modus vivendi”.

Falemos especifica­mente do território que hoje é Angola, que eventos ocorreram em função dos fenómenos epidémicos registados?

Quanto aos principais eventos ocorridos fruto dos fenómenos epidémicos mundiais no território que é hoje Angola, como disse antes, não existem muitos estudos nesta área de conhecimen­to. Mas podemos dizer que os eventos são praticamen­te os mesmos que os ocorridos em outras latitudes, variando no quesito número de morte, velocidade de propagação, reacção a nível dos governos e locais. No entanto existem enfermidad­es em Angola e, se quisermos, a nível da região Austral, cujo elevado índice de mortalidad­e nos leva a pensar que estejam, algumas delas, dentro do conceito de doenças epidémicas, sendo que a ausência, em determinad­os momentos, de estatístic­a não nos permitem assumir em que medida estas encaminham­se para as denominada­s doenças pandémicas.

Povos que se identifica­m com culturas bastante conservado­ras começam a ver que, fruto da Covid-19, faz-se necessária uma proximidad­e cada vez menor

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PAULO MULAZA | EDIÇÕES NOVEMBRO

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