“Fui brutalmente agredido com pedras e pauladas até desmaiar”
Fernandes dos Santos Fernandes, conhecido nas lides desportivas por “FF” (pseudónimo profissional que comporta a letra inicial do nome e do apelido)foi árbitro de futebol na década de 80, tendo actuado no campeonato provincial de Benguela e no Girabola. N
O polémico jogo contou para a sexta jornada e daria ao vencedor a liderança do provincial de Benguela, com acesso ao torneio de apuramento à primeira divisão. O Jornal de Angola procurou o antigo árbitro na zona do Futungo, em Luanda, onde reside desde os anos 2000, mas não foi fácil convencê-lo a relembrar os momentos traumáticos que viveu durante a sua passagem pela arbitragem.
Fernandes dos Santos Fernandes “FF”jogou futebol no Lobito Sport Club Ferrovia entre os anos de 1978 e 1980, no campeonato interprovincial, onde se destacoucomo guarda-redes principal.Em 1980 recebeu proposta de renomados árbitros séniores da província de Benguela - Mário Amuzalaque e Luciano Rosa “Cardeal” -para integrar a carreira de árbitro, começando como estagiário e, mais tarde,passando a fiscal de linha, em campeonatos intermunicipais. Aos 36 anos de idade, em 1986, passou à categoria de árbitro provincial, com a possibilidade de auxiliar nos jogos da primeira divisão nacional, vulgo “Girabola”. De 1986 a 1987, numa altura em que estava a ser preparado para transitar a árbitro da primeira divisão, desempenhou funções de árbitro assistente em várias partidas da primeira divisão, na equipa do memorável e respeitado árbitro Luciano Rosa, conhecido na época por “Cardeal”.
Golo polémico
Na sexta jornada do Campeonato Provincial de 1987,houve o cruzamento do Académica do Lobito com o Sital de Benguela, que daria ao vencedor a liderança. De acordo com “FF”, a Associação de Árbitros de Benguela era responsável pela nomeação do árbitro. “Para este jogo, estava indicado Mário Amuzala que, árbitro sénior de categoria nacional, já falecido. Mas,de repente, a comissão decidiu que fosse eu a apitar o jogo. Eu era tido como carrasco e ‘armado em correcto demais’, por alguns adeptos e clubes da região. Estava diante de um jogo polémico e, por ser do Lobito, na véspera cogitava-se uma arbitragem tendenciosa. Durante a vida andei abraçado com o sentido da disciplina, por isso, como árbitro, a coerência era o meu timbre”, sublinhou.
De acordo com “FF”, o problema começou aos 15 minutos da primeira parte, depois de anular um golo da Académica do Lobito, por ter sido marcado em fora de jogo. “A Académica estava a jogar em casa. O lance de que derivou o golo anulado aconteceu no momento em que um dos jogadores da Académica, que, por força da jogada,tinha saído das quatro linhas, sem autorização entra de repente, perto de um dos postes da baliza defendida pelo Sital. Recebeu a bola do companheiro que estava em campo e marcou o golo de cabeçada. Embora sendo filho da terra, tive que assumir o meu papel de árbitro e fazer cumprir as leis do desporto. Estava fora de jogo, tive que anular o golo”.
Como é óbvio, conta, houve contestação por parte de alguns jogadores, mas a grande revolta veio dos adeptos da Acadêmica que estavam nas montanhas. O antigo árbitro explica que o campo da Académica do Lobito situa-se numa espécie de buraco, onde, num lado tinha as bancadas e no outro o morro onde ficava um “amontoado” de gente.
“Até ao intervalo, as equipas estavam empatadas a uma bola. No segundo tempo, a Académica desempata (2-1) e, passando alguns minutos, um dos jogadores da Académica,em plena grande área, tentou ludibriar-me desviando a trajectória da bola com a mão.Tive que assinalar pênalti. Não havia hipótese, foi mão na bola, com o meu assistente de linha a confirmar”.
Após o golo do Sital, refere “FF”, já nos últimos minutos do jogo, os adeptos da Académica do Lobito foram criando um ambiente hostil contra a equipa de arbitragem,entoando cânticos de ameaça e lançando objectos contundentes ao campo. Segundo ainda o antigo árbitro, já nos últimos minutos do jogo o Sital marca, vencendo o jogo por (2-3).
Devido ao ambiente menos bom que se registava, no final do jogo, Fernandes dos Santos Fernandes “FF” foi alertado pelo vice-presidente da Académica para que não saísse do lado do morro, devido ao grande número de adeptos furiosos que lá estava a sua espera. “Havia poucos polícias no asseguramento do jogo e a porta habitual de saída, que dava para os balneários, estava cercada de adeptos da Académica do Lobito insatisfeitos. Então, tivemos que colocar em ação o plano B, que era sair mesmo pelo lado do morro. Por via de dúvidas, passaram primeiro os meus assistentes de linha e não tiveram problemas”.
Despois dos assistentes passarem, “FF” dirigiu-se ao portão, mas, infelizmente, foi abordado por dezenas de adeptos que gritavam enfurecidos. “Enquanto me agrediam, gritavam ‘Agarrem o traidor, não deixem passar o ingrato filho da terra’. Defendi-me na medida do possível, mas não foi para tanto. Fui brutalmente agredido, com pedras e pauladas em todo corpo, até desmaiar. Chibi, técnico da Académica do Lobito, foi quem me recolheu do chão, mas já desmaiado, e levou-me ao hospital, onde permaneci em coma durante vinte e quatro horas”.
O antigo árbitro acrescentou que um dos ferimentos na cabeça teve de ser suturado com 32 pontos.
Depois de uma semana de tratamento foi-lhe dada alta hospitalar. “FF” decidiu então abandonar a arbitragem, numa época em que estava a ser preparado para ascender à categoria de árbitro titular da primeira divisão.Querido por alguns e odiado por outros, “FF” lembra-se que, na altura, o delegado provincial dos desportos de Benguela, Victor Jeovete Barros, procurou por ele quando estava em convalescência, com a finalidade de persuadi-lo a desistir da decisão, mas o homem do apito estava mesmo decidido a abandonar os campos. Devido ao trauma da agressão que sofreu, “FF” ficou sem ir aos campos de futebol durante vários anos.
“Enquanto me agrediam, gritavam ‘Agarrem o traidor, não deixem passar o ingrato filho da terra’. Defendi-me na medida do possível, mas não foi para tanto. Fui brutalmente agredido, com pedras e pauladas em todo corpo, até desmaiar. Chibi, técnico da Académica do Lobito, foi quem me recolheu do chão, mas já desmaiado, e levou-me ao hospital, onde permaneci em coma durante vinte e quatro horas”.