Que liberalismo é esse, então?!
Acontecimentos e factos recentes levam-me a considerar que o liberalismo – uma das metanarrativas que ajudou a configurar o mundo nos últimos séculos - está presentemente em crise (conceitual, económica, moral e política), com consequências imprevisíveis, mas ameaçadoras. Não sou, certamente, o único a alimentar tais receios.
Pela parte que me cabe neste latifúndio, como canta o brasileiro Chico Buarque, confesso-me totalmente baratinado com tantas posições antiliberais por parte de autodeclarados e contumazes liberais, nos últimos tempos e em várias partes do mundo. Recorro, por essa razão, à retórica que me é naturalmente intrínseca – a angolana – para perguntar, sem aspas e com o ritmo cantado do povo, acentuando a palavrinha “então” no final da frase, para exprimir ao mesmo tempo dúvida e espanto:
- Que liberalismo é esse, então?!
A maka começa com a própria definição conceitual de liberalismo. Comummente, os teóricos distinguem o liberalismo económico (priorização exclusiva da iniciativa privada e esvaziamento tendencialmente absoluto do papel económico do Estado) e o liberalismo social e de costumes (moral, sexual, religiosa, etc.). Esses dois grandes modos, digamos assim, liberais não são necessariamente coincidentes. Pode ser-se liberal do ponto de vista económico e conservador do ponto de vista social e de costumes.
A primeira nota é que a actual pandemia da Covid 19 veio como que pôr a nu as fragilidades do liberalismo económico e, concomitantemente, a hipocrisia dos seus defensores mais acérrimos e radicais, que não hesitaram em pedir o socorro do Estado para minimizar os efeitos causados pelo novo coronavírus. O mais provável é que as coisas, nesse sentido, voltem à “normalidade” quando a pandemia passar, mas, pelo menos, ficamos entendidos.
Outra nota é que, estranhamente, e apesar de ter começado por ser uma filosofia política, as relações entre o liberalismo e a política são, hoje, pouco desenvolvidas teoricamente.
A hipótese inicial para isso é que talvez o entendimento político do que é liberalismo seja uma espécie de dado adquirido, pelo que não parece necessário repeti-lo ou explicitá-lo. A excepção serão os Estados Unidos, onde a palavra “liberal” possui uma assumida carga política, sendo normalmente associada à ala mais progressista do Partido Democrata.
Outra hipótese para tentar explicar a lacuna acabada de referir é que, na realidade, os liberais (economicamente) sabem há muito tempo que o florescimento da iniciativa privada, ou seja, do capitalismo, não tem relação orgânica com o liberalismo político. A história está cheia de exemplos de ditaduras capitalistas onde a economia privada medrou. Em alguns casos, tais países foram considerados exemplos da “bondade” do (neo)liberalismo económico. É o caso do Chile.
A questão pode, entretanto, ser vista por outro ângulo: a inexistência de um vínculo directo e necessário entre liberalismo político e modelo económico explica também porquê que forças sociais não - liberais do ponto de vista económico podem sê-lo do ponto de vista político, bem como no plano social e dos costumes. Mais do que “podem”: devem. Parece indiscutível, na minha opinião, que a esquerda moderna, sem abdicar da sua visão social e de classe no terreno da economia, tem de ser política, social e moralmente liberal.
O que não pode ser é ingénua. Com efeito, começam a surgir no horizonte sinais consistentes de que a direita liberal pode voltar a aliar-se à extrema direita, como aconteceu nos anos 30 do século passado na Alemanha, tendo viabilizado, por isso, o advento do nazismo.
A subjugação do Partido Republicano norte-americano – o partido de Lincoln – a uma figura como Donald Trump é um desses sinais. Pelo menos para quem acompanha à distância a situação nos EUA, teve de acontecer, por certo, um corte muito forte e inesperado na história política americana para explicá-lo teórica e intelectualmente. Justificá-lo e aceitá-lo é impossível.
O mesmo se pode dizer do surgimento do bolsonarismo no Brasil. Por mais erros e crimes que o PT ou alguns dos seus líderes tenham cometido – politicamente, o seu equívoco fatal foi ter-se deixado enredar pelas teias da secular corrupção do país -, a direita liberal será historicamente responsável por ter preferido aliar-se a Bolsonaro, ao invés de viabilizar uma solução política democrática para o país. A afirmação feita há tempos por Fernando Henrique Cardoso de que “mal ou bem, Bolsonaro foi eleito” é, para usar um adjectivo generoso, confrangedora. Hitler também foi eleito e deu no que deu.
A terminar, não posso deixar de mencionar, como um exemplo dessa notória deriva do liberalismo ocidental, a actual polémica criada em Portugal à volta da disciplina de educação e desenvolvimento incluída no currículo escolar do nível secundário do referido país.
De facto, saber que líderes da direita democrática portuguesa – como o antigo Presidente da República e Primeiro-Ministro, respectivamente Aníbal Cavaco e Silva e Pedro Passos Coelho – são contrários a uma disciplina que prepara os jovens para lidar com problemas como a violência doméstica, aprender a aceitar a diversidade ou capacitarem-se para serem empreendedores não confirma apenas um conhecido aforisma da nossa língua comum - vivendo e aprendendo -, mas demonstra também como a direita liberal ocidental, assustada não se sabe com quê, tende a inclinar-se perigosamente para a extrema direita.