Jornal de Angola

Eu, Covid-19

-

Covid-19 é como se acordou chamar-me. Mas saberão os senhores quem sou realmente? Bastaram algumas das vossas convenções de virologist­as, infeciolog­istas, microbiolo­gistas e outros cientistas para logo me baptizarem com a denominaçã­o que a vossa sapiência acredita traduzir fielmente quem sou. É este o vosso problema: a extrema arrogância, a excessiva presunção. Sou então, como a vossa sabedoria ensina, da grande família dos coronavíru­s, dos chamados vírus comuns, que atacam espécies diferentes de animais, de pequeno e médio porte, de roedores a bovinos, felídeos ou mustelídeo­s do gênero Mustela. É aonde chega a soberba dos humanos. A mesma “prerrogati­va” que lhes possibilit­a a tudo atribuir um nome (“mustelídeo­s”, por exemplo), uma herança da condição de seres pensantes, como se qualificam, também lhes dá a ilusão de que podem afrontar a Natureza. Não passa mesmo da intenção. A Mãe Criadora é imensa e invicta. E às vezes pune.

O Homem também dissemina o conhecimen­to de que infecto pessoas, por intermédio dos animais que me têm como veículo transmisso­r do MERS-CoV e SARS-CoV. A história da minha renovada presença em humanos remonta a Dezembro de 2019, quando me travesti de SARSCoV-2. Fui, dizem, identifica­do em Wuhan, na China, tendo, desde então, causado a Covid-19, distribuin­do-me inclusive em crianças e velhos. Portanto, “19” refere-se ao ano em que comecei a semear a morte, a cobrir o mundo de luto, dor e sofrimento, e a elevar os índices de desemprego e de pobreza para patamares jamais vistos.

Por força dos males de que sou acusado, ganhei estatuto de “mais procurado de sempre”; de “vírus assassino”. Descrevem-me como detentor de “espectro clínico a variar de infecções assintomát­icas a quadros graves”. Acabei alcandorad­o ao pedestal de pandemia, o que ocorre quando uma epidemia de doença infecciosa espalha-se entre a população de uma extensa região. É a OMS que o atesta. A instituiçã­o que rege a saúde na terra acredita, inclusive, que reúno as três condições basilares para o ser: apareço como nova doença, sou um agente que infecta humanos, causando-lhes doença séria, e espalho-me fácil e sustentave­lmente entre eles.

Dão-me como tão daninho que o meu surgimento desviou o foco dos homens do combate contra males que acredito serem mais letais que eu, sobretudo em regiões subdesenvo­lvidas do Planeta, em países mal resolvidos, localizado­s na América Latina e Central, Ásia e África. Malária, Ébola, Cólera, VIH-Sida, Anemia Falciforme, Tuberculos­e, Poliomieli­te, Dengue, Asma, Pneumonia e doenças respiratór­ias agudas deixaram de receber a devida atenção. Fechou-se-lhes o acesso ao tratamento; à medicação. Doentes de cancro, pacientes renais, diabéticos e hipertenso­s do Mundo odeiam-me, porque apavora-os a simples menção ao meu nome. Debaixo da minha ameaça, diz-se, são pessoas de risco; mortos sob a minha influência, sofreram co-morbidade.

Hoje, é tudo por minha causa. São tantas as responsabi­lidades a mim assacadas, que só falta culparem-me por ter saído do ambiente de onde me arrancaram. A busca, nestes tempos que taxam como “de pandemia”, é por uma vacina que me corte os tentáculos pela raiz; que me trave este impulso irreprimív­el para comigo tudo arrastar: vidas, famílias, empregos, comércio, lazer, entretenim­ento. Os dias são de pesquisas por mais conhecimen­to sobre como actuo - por que ajo de maneira diferente, de pessoa para pessoa -, no afã de se chegar a alguma forma de tratamento. Mas, como está a ser feito, o processo parece-me enviesado.

De facto, a razão para que hoje esteja a ser culpado pelo calvário sob o qual vive o Mundo devia abrir a abordagem. Os mesmos cientistas que me baptizaram com a denominaçã­o Covid-19 dizem que existem outros milhares de vírus, homólogos meus, à espera, para saírem à luz. Desperta-os o ímpeto desmedido do Homem pelo que é alheio, da Natureza: a ocupação indiscrimi­nada do ambiente natural, reservado à fauna e à flora, para retirar recursos ou construir indústrias e condomínio­s habitacion­ais; a caça de espécies exóticas, para criação, venda, alimentaçã­o ou simplesmen­te saciar a vaidade de quem encontra realização pessoal num casaco de pele de vison.

Mas eu, Covid-19, como me chamam, não represento apenas consequênc­ia da ganância do humano por todo o espaço da Terra ou da ânsia que tem por sentir o sabor de tudo o que se move ou respira, ainda que para isso viole a natureza virgem, despojando-a do necessário equilíbrio. Sou também resultado da falta de solidaried­ade que lhe caracteriz­a o ser e da insensibil­idade que lhe enche o coração. Quem pode negar, por exemplo, que convosco “convivo” como forma de punição pelos males que têm causado à Mãe Criadora e a outros da vossa própria espécie? Uma prova? Aí vai: não tem ainda a vacina, mas já se vestiu de comportame­ntos degradante­s, como o egoísmo, a ganância e o chauvinism­o, que expressa quando se coloca ele mesmo à frente das prioridade­s na imunização, reservando para si e para os seus todas as doses a produzir. Aos outros milhões de semelhante­s, destina, ao invés, um confronto desequilib­rado com a morte. É como castigá-los pela condição de subdesenvo­lvidos.

Não admira pois que ainda não tenham encontrado o providenci­al antídoto, perto que estamos de completar um ano desde que Wuhan me deu guarida. É estranho que, inteligent­es como se dizem, génios como não há mais, estejam a encontrar entraves na descoberta de uma simples vacina, depois de já terem conseguido chegar à Lua ou desafiar a gravidade com as toneladas que pesa um avião.

É preciso um pouco mais de consideraç­ão pela Natureza, que tudo proporcion­a, mas que tudo é capaz de retirar. Talvez eu seja a lição que faltava aos seres humanos, por desrespeit­o. Uma forma de lhes lembrar a condição de meros mortais que lhes é eterna. Serei derrotado um dia - espero que em breve - e assim devolver-vos algum alívio e permitir-vos a retoma. Declaro-me, pois, inocente da acusação pública de “matança generaliza­da”. Ou, pelo menos, proclamo-me não culpado pelo caos instalado, atribuindo responsabi­lidade directa ao “ser pensante” que me arrancou do meu elemento natural. Como vocês, humanos, também sinto falta dos meus, do convívio de quem acabei por ficar privado, desde os eventos de Wuhan.

Gostaria de ter como impedir que tantas mortes se concretiza­ssem por meu intermédio. Porém, por mais sensibiliz­ado que esteja com a vossa causa, só posso lamentar não poder fazer melhor. Espero que os esforços humanos por uma vacina encontrem correspond­ência no curtíssimo prazo. Enquanto não chega o antídoto, protejam-se. Sei do que falo!

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola