Artigo 21º
O sonho da independência esteve associado a um sonho de liberdade. De dignidade. De fim da discriminação e de igualdade. Mas não só. À necessidade de se eliminar o fosso entre o que o colonizador impôs como valores e o que é autóctone. Pois ao colonizado, no balanço de tantos anos de ocupação e opressão, tentou-se-lhe roubar tudo. As terras, a capacidade de decisão, a língua, a cultura, os seus deuses, e até a sua alma.
Com a liberdade, a independência trouxe consigo a aspiração ao bemestar. Ao acesso à saúde e à educação. À igualdade de oportunidades. À possibilidade de almejar qualquer merecida posição social e económica na sua própria terra. Infelizmente, em muitos dos processos que levaram à independência da maioria dos países africanos, o que se assistiu foi apenas à substituição do opressor, mesmo quando os ideais anunciados nos discursos tenham sido os mais revolucionários. Verificando-se uma diminuição da capacidade de realização, levando a um inevitável empobrecimento dos referidos territórios e dos povos que neles habitam.
A degradação das condições de vida das populações leva à diluição dos sonhos mais sublimes e ao surgimento de vozes saudosistas, em particular no seio dos mais velhos, que de alguma forma viviam nos arrabaldes da riqueza proporcionada pelo velho patrão, e que agora choram as benesses perdidas.
Entretanto, os filhos da independência têm a obrigação de criar algo novo. De (re)fazer as perguntas difíceis, que os seus pais não souberam responder. E procurar o caminho que possa fazer ressurgir, senão os sonhos, pelo menos as oportunidades de voltar aos princípios e valores que alimentaram a ilusão de tantos combatentes da liberdade.
Caminhando para os nossos 45 anos de país independente (27 dos quais vividos numa guerra fratricida) é mais do que altura de fazermos a pergunta: que tipo de sociedade afinal queremos? A sociedade “igualitária” que tão toscamente procurámos construir nos primeiros anos de independência? Ou a deriva capitalista que vem criando abismos de riquezas e de oportunidades entre os angolanos, ainda que muitas vezes mascarada pela demagogia de um paraíso liberal onde todos podem ser ricos?
A verdade é que não prestamos a devida atenção - nem respeitamos - o que nós próprios já definimos como sociedade e como pais que queremos e precisamos...
O artigo 21º da nossa Constituição estabelece as tarefas do Estado, e está lá tudo. É só cumprir com o que nos deveria reger. E isso obriga a uma criteriosa gestão do que é de todos. Uma gestão pública acima de qualquer ideologia partidária, por um Estado parcimonioso e responsável, integrado por servidores, e não por indivíduos que dele se servem.
Ao cabo de tantos anos de construção e reconstrução do país, temos de conseguir o essencial, e isso exige a eliminação da pobreza. Eliminar a pobreza!, pelo menos aquela que tem conduzido os cidadãos a actos desesperados, como os que têm sido reportados pelos meios de comunicação social. Exige eliminar o analfabetismo, uma das grandes lacunas da lista do que se desconseguiu no pós-independência. Exige acesso à escola, com qualidade - para todas as crianças - e com, pelo menos, uma merenda escolar para os grupos mais carenciados. Exige o acesso aos cuidados primários de saúde, por parte de todos os cidadãos, em particular as crianças e as mães. Exige um cuidado particular com a saúde reprodutiva, para que não continuemos a multiplicar a pobreza e a lançar para a miséria mais crianças indefesas. Exige, enfim, criar as condições para que todos os cidadãos participem na tomada de decisões, em especial aquelas que afectam directamente as suas comunidades.
Precisamos de assumir - claramente e sem complexos - que somos um país pobre. Apesar das potencialidades que temos.
No mundo de hoje todos os activos são de um valor muito limitado, se não tivermos o maior de todos que é uma população instruída e saudável. Pois sem isso, tudo o que temos é pasto para os abutres. É levedura para engordar os donos do capital. É preciso investir decididamente na saúde e educação. Investir o que desperdiçamos nos mercedes e nos lexus. Buscar nas nossas entranhas, na nossa alma não vencida pela alienação, o melhor da nossa capacidade de realização. Pois só assim poderemos sair do buraco onde estamos.
Precisamos de criar riqueza centrados na ideia que os principais beneficiários têm que ser os que hoje nada têm, que são quase sempre os que já ontem, antes da Independência… nada tinham! E que precisam urgentemente de estar em condições de construir a sua própria vida. E isso exige que o Estado crie as condições ao nível da infra-estrutura, da estabilidade e da transparência, para que cada iniciativa económica possa ser rentável.
E que cada kwanza seja bem gasto e justificado! Cada recurso disponibilizado da forma que mais beneficie o país. Para que se criem empregos, e todos paguem os seus impostos, retribuam à nação. Que o desenvolvimento surja nos quatro cantos do território, de uma forma sustentável, num país ligado e preocupado em facilitar as trocas entre os seus cidadãos, valorizando aquilo que produzem. Pois as trocas, a satisfação das necessidades de cada um, não gera apenas os recursos indispensáveis à sobrevivência: trazem a cada uma satisfação de poder prover aos seus com o seu próprio esforço. Não há mais pobres do que aqueles que dependem da caridade.
Cada cidadão tem o dever de exigir o cumprimento da Constituição. E o direito de ter a palavra para ajudar a construir o Estado, a Nação e o País que tanto nos fazem falta. Queremos um Estado que cumpra com os seus deveres. Deveres que estão perfeitamente enunciados no Artigo 21.º da Carta Magna. Não temos outro caminho…