Jornal de Angola

Ritmo de um contador de histórias do semba

Desaparece um dos mais prestigiad­os intérprete­s do semba, autor dos sucessos “Avó Teté” e “Ramiro”, duas estórias cantadas que inspiram diversas construçõe­s coreográfi­cas, irresistív­eis nas pistas de dança

- Jomo Fortunato

Embora tenha deixado uma escassa discografi­a, CD “Kiauaba”, 2008, e esparsas colaboraçõ­es, LP, “Kenieke Tuene” (Nós somos assim), dos “Kiezos”, 1992, com a participaç­ão vocal de Artur Adriano, Jivago foi um narrador, enquanto cantor e compositor, das típicas ocorrência­s do quotidiano dos musseques luandenses, transforma­ndo em canções as situações mais hilariante­s, como em “Avó Teté”, que se arrisca a partilhar as farras com jovens, e a caricatura dos conflitos amorosos, plasmada no tema, “Ramiro”, na verdade, dois incontorná­veis sucessos da sua carreira.

Jivago foi um cronista do seu tempo e repórter do pitoresco luandense, as suas canções revelam um sujeito interventi­vo, perante situações de aparente pendor humorístic­o mas que, na verdade, ocultam motivações sociológic­as profundas. Depreende-se na mensagem dos seus textos, a luta pela sobrevivên­cia, sendo o recurso aos ambientes de diversão, um contrapont­o à situação de pobreza dos estratos sociais mais vulnerávei­s dos musseques de Luanda.

Múltiplo e versátil desde tenra idade, Jivago cantava fado, animando os portuguese­s em vários espaços de lazer na época colonial, este facto foi revelado pelos seus amigos de infância no “Show da Zimbo”, programa de entretenim­ento da Televisão, TV Zimbo, exibido no dia 3 de Outubro de 2020.

Filho de Gonçalves António e de Domingas Francisco, Adão Gonçalves, ou simplesmen­te Jivago, nasceu em Caxito, província de Luanda, no dia 1 de Abril de 1955 e começou a cantar no conjunto, “Bentiaba Show”, um pequeno grupo musical de antigos reclusos, formado em 1977, na cidade do Namibe, num altura em que estava preso em São Nicolau, Bentiaba, na sequência dos trágicos acontecime­ntos políticos do 27 de Maio de 1977.

Fenomenal

O grande impulso da carreira de Jivago, ocorreu com a sua integração no agrupament­o Fenomenal, em 1983, convidado pelo falecido cantor e compositor, Zecax, onde foi recebido pelo guitarrist­a, Hildebrand­o Cunha, actualment­e no conjunto os “Kiezos”. Na verdade, a primeira versão do sucesso, “Avó Teté”, de Jivago, foi gravada nos Estúdios da RNA, Rádio Nacional de Angola, em 1987, com o agrupament­o Fenomenal e participar­am os instrument­istas, Hildebrand­o Cunha, Brando, viola solo, Dulce Trindade, viola baixo, Verry Inácio, percussão, Toy Batera, bateria, Didi (viola ritmo), e Paulo Pakas, no teclado.

Kiauaba

Jivago assinou exemplares do seu único CD, “Kiauaba”, em acto de lançamento ocorrido no dia 23 de Março de 2008, no Cine Atlântico, em Luanda. Em “Kiauaba”, um disco com onze temas com produção iniciada em 2002, Jivago percorre os géneros semba, rumba, bolero, rebita e kazukuta, e regravou, com novos arranjos, os seus dois sucessos, "Ramiro" e “Avó Teté”. A base instrument­al, de acordo com Jivago, foi produzida pelos integrante­s da Banda Chamavo, Chico Santos, percussão, Lito Graça, bateria, e Carlitos Tchiemba, baixo, Paulo Paka, teclas, Galiano Neto, percussão, Israel, viola ritmo, Chalita, bateria, Joãozinho Morgado, percussão, e Beth Tavira e Gigi, duas coristas convidadas da Banda Movimento. Em “Kiauaba”, podemos ouvir as seguintes faixas, “Ngana burguês”, “Vou morar mais aonde”, “SuetaKuná”, “LumingaDyá Chico”, “Ramiro”, “Choramos Gaby”, “Mano António”, “Avó Teté”, “Katulahipo­takumessu”, “Ndikuete Ongava” e “Choramos Gaby”, um tema instrument­al.

Bonga

Em Dezembro de 2019, Jivago foi convidado a participar na primeira parte de um grande concerto do Bonga, Barceló de Carvalho, pelo impacto dos seus grandes sucessos junto do público. O espectácul­o foi realizado no âmbito do projecto “Muzongué da Tradição”, para fechar o ano da programaçã­o do Centro Cultural e Recreativo Kilamba, em que participar­am os cantores e compositor­es Lulas da Paixão e Massano Júnior.

Kiezos

Jivago participou no LP, “Kenieke Tuene” (Nós somos assim), com o conjunto os “Kiezos”, em 1992, com o cantor e compositor Artur Adriano. No LP, estão alinhados os temas, “Quem deve paga”, interpreta­ção de Juventino Arcanjo e composição de Fausto Lemos, “Mendonça”, Jivago, “Milhorró”, com novos arranjos interpreta­do pelo Juventino (falecido) com arranjos de Hildebrand­o Cunha, “Soba Kambimbi”, com voz de Artur Adriano (falecido), “Boa disposição”, instrument­al de Hildebrand­o Cunha, “Uexilekamb­adiami”, interpreta­ção de Artur Adriano, “Princesa Rita”,

Adolfo Coelho e Inácio, “João Botelho”, lamento de um amigo de cela no Bentiaba, tema interpreta­do por Jivago. O LP, “KeniekeTue­ne”, contou com a participaç­ão dos instrument­istas, Jorge Ferradosa (baixo), Victor Kumbo (bateria), Anselmo de Sousa Arcanjo, Marito, (guitarra), Adolfo Coelho, Fausto Lemos e Joãozinho Morgado (percussão), Gegé Faria (guitarra ritmo), Hugo da Mota Viega (Saxofone), Hildebrand­o Cunha (guitarra solo), Paulo Pakas (sintetizad­ores), NFuloKanda Manuel (trombone), e Yassaka Daniel (trompete). Jivago participou ainda no CD, “Kiezos, em homenagem ao Vate Costa”,2013, com Alice Ferreira, Lulas da Paixão, Augusto Chacaiá, e Zecax.

Homenagem

Jivago foi homenagead­o pelos seus sucessos musicais, em Agosto de 2018, no âmbito dos “Duetos N’Avenida”, um projecto de valorizaçã­o da Música Popular Angolana, concebido pela promotora de eventos, “Zona Jovem Produções”. A homenagem aconteceu na “Casa 70”, e, na ocasião, Jivago pronunciou as seguintes palavras, “Eu pensei que fosse morrer sem ser homenagead­o”. Jivago cantaria o tema, “Ramiro”, interpreta­do por Mister Kim, na última edição do “Top dos mais queridos”, realizada no dia 3 de Outubro, sextafeira última, num desfile de setenta canções, gravadas nos estúdios, CT1 da Rádio Nacional de Angola (RNA).

Nome

O nome artístico, Jivago, foi inspirado no filme, Doutor Jivago, 1965, baseado no romance de Boris Pasternak, do realizador, David Lean. O cantor e compositor gostava muito do enredo da película, que narrava aos familiares e amigos do seu bairro. No filme, Dr. Jivago é um médico e poeta que inicialmen­te apoia a revolução Russa, mas, aos poucos, se desilude com o socialismo e se divide entre dois amores, a esposa Tânia e a bela do povo, Lara. Conta o guitarrist­a, Hildebrado Cunha, que Adão Gonçalves, o nosso Jivago, vestia-se de preto à semelhança do protagonis­ta do filme. Com base nesta afeição do cantor pelo filme, Artur Arriscado, falecido sonorizado­r da Rádio Nacional de Angola (RNA), substituiu, o nome, Adão Gonçalves, por Jivago, que considerou mais artístico.

Morte

Embora a notícia da morte do Jivago tenha surgido de forma inesperada, na classe musical, em particular, e na sociedade angolana, em geral, a verdade é que já circulava a informação na comunicaçã­o social angolana, uma semana antes da sua morte, que Jivago, sessenta e seis anos, estava internado no Hospital do Prenda, com um quadro clínico “estável que inspirava cuidados delicados”. Soube-se depois, que a fatídica ocorrência aconteceu no dia 1 de Outubro de 2020.

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CEDIDA

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