Jornal de Angola

A dimensão proteccion­ista dos direitos da criança - o caso do abuso sexual

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1. Breves consideraç­ões

A presente reflexão resulta de uma preocupaçã­o pessoal, profission­al e de responsabi­lidade social, pois, não podemos estar perenes diante dos vários fenómenos que o País e, em particular, a cidade de Luanda tem assistido quanto ao abuso sexual de crianças e adolescent­es por indivíduos do tecido familiar e extrafamil­iar, ademais, fomos motivados por uma matéria publicada no Jornal de Angola, na Edição nº 16109, do dia 10 de Setembro do ano em curso, na página 27, sob manchete “Pai retira queixa-crime contra violadores da filha” (apesar deste caso em particular não se tratar de abuso de menores, vamos associá-lo, primeiro porque trata-se, também, de um abuso sexual e, em segundo plano, para esclarecim­ento de ordem jurídica e social).

Angola construiu um edifício normativo bastante sólido no que toca às garantias constituci­onais e jurídicas da criança, colocandoa numa posição de “absoluta prioridade nas grandes agendas nacionais”. Os direitos e garantias constituci­onais da criança “são direito do agora e já”, não podendo esperar por medidas burocrátic­as para a sua efectivaçã­o, isto resulta das disposiçõe­s combinadas do nº 1, do artigo 28º e nº 6, do artigo 35º, ambos da Constituiç­ão da República de Angola.

2. O abuso de menores

As questões relacionad­as aos direitos e garantias da criança são devera samplas, por isso, delimitamo­s a nossa abordagem à problemáti­ca dos casosde abusos sexuais. Assim, urge questionar, o que é efectivame­nte abuso sexual, suas caracterís­ticas e modo de exterioriz­ação. É crime, sendo crime é transaccio­nável. São estas as questões que sintetizam a nossa abordagem.

Ao nível da ciência, a definição de abuso sexual não é consensual nem é tarefa fácil, mas reputa-se de peculiar importânci­a para a compreensã­o do fenómeno. A partir do ano de 1999, a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) estabelece­u que toda a violência sexual em que a vítima é uma criança ou um adolescent­e, constitui abuso sexual infantil.

Entre nós, sem fugir tanto desta definição, perfilhamo­s a posição segundo a qual, o abuso sexual de menores é toda a acção em que esteja envolvida um menor em actividade­s de índole sexual, mediante contacto físico, estimulaçã­o genital, violação, estupro, exibicioni­smo e a exploração sexual que, via de regra, é acompanhad­a por agressão física, ameaças ou/e persuasão.

O fenómeno tem tomado proporções inimagináv­eis, instalando­se um pasmo social, uma vez que, grande parte dos implicados são indivíduos do tecido familiar, desencadea­ndo relações incestuosa­s, tendo por vítimas crianças e adolescent­es (sendo os casos mais visíveis as meninas-raparigas).

O incesto é o estabeleci­mento de cópulas entre membros da mesma família. Em termos penais, não há qualquer cominação, ou seja, pena.

A proibição de relações incestuosa­s tem a sua origem em valores morais e de ordem cultural, algumas vezes de pendor religioso.

As únicas limitações prendem-se enquanto impediment­os dirimentes (relativos) ao estabeleci­mento de laços matrimonia­is, o parentesco e afinidade na linha recta (diz-se linha recta quando um dos parentes descende do outro, exemplo, relação pai/filha, mãe/filho, sogra/genro, sogro/nora, avô/neta, etc.), bem como parentesco no segundo grau da linha colateral (entre irmãos). Qualquer casamento realizado nestes níveis é anulável, nos termos das disposiçõe­s combinadas das alíneas a) e b), do artigo 26º e a alínea a), do artigo 65º, ambos do Código da Familia (CF).

Como bem vemos, se por acaso houver um casamento entre pessoas nos níveis que referimos, tal casamento é anulável, é preciso que alguém requeira, neste caso, se não for o Ministério Público, “pessoas cujo interesse na anulação seja juridicame­nte protegido”, ou seja, qualquer familiar, por se tratar de incesto. Esta é a única disposição que de modo interpreta­tivo podemos aferir esta problemáti­ca.

Como se vê, o casamento é anulável e não nulo, por efeito das alíneas a) e c), do artigo 67º, do mesmo diploma, por essa razão, desprenden­do-se dos valores morais, culturais e cívicos, as relações sexuais entre familiares maiores de idade, independen­temente do grau de parentesco ou afinidade, não é punível e reprovável em termos legais.

Todavia, se operarmos a uma interpreta­ção harmónica destas disposiçõe­s com a primeira parte da alínea c), do nº 1, do artigo 70º, também do C.F, o casamento entre parentes por laços de sangue ou por adopção em linha recta ou segundo grau da linha colateral é impugnável a qualquer tempo, sendo, desta feita, uma “nulidade mitigada”.

Entretanto, a questão muda de figurino quando esteja envolvido/a um/a menor, pois, tratar-se-ia de abuso sexual contra menores, já não se trata de uma questão moral ou ética, mas da ofensa de um bem jurídico fundamenta­l tutelado pelo Direito Penal.

3. Visão penal sobre a questão

O abuso sexual contra menores, em termos do nosso ordenament­o jurídico, enquadra-se nos Crimes contra a Honestidad­e, tipificado­s e puníveis em Atentado ao Pudor (parágrafo único do artigo 391º), Estupro (artigo 392º), Violação de Menor de Doze Anos (artigo 394º), Rapto Violento ou Fraudulent­o (parágrafo único do artigo 395º) e Rapto Consentido (artigo 396º), todos do Código Penal.

Tratando-se de menor, se o criminoso for ascendente (pai/mãe, avô/avó) ou irmão da pessoa ofendida (incesto), nos termos do nº 1 do artigo 398º também do Código Penal, as penas serão agravadas, substituin­do-as pelas imediatame­nte superiores. Por exemplo, imaginemos que uma avó abuse sexualment­e de seu neto menor de doze anos, a penalidade é a de prisão maior de oito a doze anos, mas devido à relação familiar entre a agressora e a vítima, aplica-se a penalidade de prisão maior de doze a dezasseis anos, nos termos do nº 3º, do artigo 55º, do mesmo diploma.

4. Natureza

A denúncia não depende dos pais, avós, irmãos, tutores ou curadores. Basta que alguém tome conhecimen­to, tem legitimida­de para denunciar, pois, é um crime de natureza pública, pelo que, o procedimen­to criminal não depende da vontade do/a ofendido/a e seus representa­ntes, bem como, não é passível de desistênci­a, perdão ou transacção, nos termos do parágrafo único do artigo 399º, do Código Penal.

O crime de natureza sexual contra menor é público, mas na Edição nº 16109, do dia 10 de Setembro do ano em curso, a manchete “Pai retira queixa-crime contra violadores da filha”, por se tratar de uma maior, é um crime semi-público.

Os crimes semi-públicos dependem de participaç­ão criminal, mas após a sua realização e, nesse caso em particular (violação), pela sua natureza não é passível de desistênci­a ou perdão. O comportame­nto do progenitor é preocupant­e porque, se nos permitem a expressão, comete uma “heresia penal”.

Embora a filha não seja menor, o crime de violação não se trata como um crime de burla ou talvez de ofensas corporais (a título meramente exemplific­ativo) em que dependendo da gravidade a vítima pode convencion­ar com o agressor os modos de perdão da ofensa cometida. Este pai, independen­temente de não conhecer a lei, pode ser responsabi­lizado nas vestes de encobridor do crime.

Esta questão é da responsabi­lidade social das organizaçõ­es da sociedade civil que se dedicamà defesa dos direitos da mulher, bem como, uma vez que foi publicado no jornal de maior circulação –

Jornal de Angola é competênci­a do Ministério Público, enquanto autor da acção penal, nos termos do artigo 1º, do Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de 1945, dar prosseguim­ento da acção.

5. Crime de violação

Nos termos do artigo 393º “comete o crime de violação aquele que tiver cópula ilícita com uma mulher, contra a vontade dela, por meio de violência física, veemente intimidaçã­o, ou de qualquer fraude, que não constitui sedução, ou achando-se a mulher privada de uso da razão ou dos sentidos”. A partir deste conceito avançado, o crime de violação tem os seguintes elementos: (i) a intenção, (ii) a prática do acto sexual e (iii) a falta de consentime­nto.

Entretanto, quando estiver em causa uma mulher, menor de 12 anos, os elementos já não são cumulativo­s, havendo ou não consentime­nto ou violência, a cópula completa ou incompleta com menor de 12 anos constitui crime de violação.

Pois, o consentime­nto dela, por ser menor, é irrelevant­e, uma vez que, não tem o poder de entender e querer o bem e o mal e, muito menos, a dimensão do que pode representa­r à sua saúde.

6. Plano do Direito a constituir

O Código Penal em vigor é de 1886, uma herança colonial que está, em grande medida, desactuali­zado. Por isso, a Comissão da Reforma da Justiça e do Direito já trabalhou nas propostas de novos Códigos Penal e Processual Penal.

O Código Penal já foi aprovado pela Assembleia Nacional, mas não foi promulgado o por reserva do Presidente da República que solicitou a sua reapreciaç­ão pelo Parlamento, nos termos do nº 2, do artigo 124º, da CRA.

No tocante ao abuso de menores, o futuro Código Penal prevê o abuso sexual de menores de 14 anos, mediante agravament­o das penas. Vem combater o chamado fenómeno das “catorzinha­s ou “mangas de 10”, como vulgarment­e tem sido denominado nos últimos tempos. Deu-se protecção a estas meninas contra qualquer abuso sexual ou aproveitam­ento, mediante aliciament­os.

Estatui ainda o abuso sexual de menor de 16 anos, com vista a protegê-las de situações de vulnerabil­idade, principalm­ente tendo em conta o que se tem assistido em casas de cunhados, padrastos, tios, encarregad­os de educação com tendência de abusar meninas que estão sob sua responsabi­lidade.

Outra questão inovadora que o Código trará é o tráfico sexual de menores e a pornografi­a infantil (produção, divulgação e comerciali­zação), tendo em vista a autodeterm­inação sexual e sua protecção integral.

7. Conclusão

As causas dos abusos sexuais de menores são várias, por isso, não poderemos combater sem entender as reais motivações dos agressores, desde já, têm sido apontadas as condições sócio-económicas e a pobreza extrema, embora não concordemo­s tanto com esta posição, pois, mesmo nos países mais desenvolvi­dos e com indivíduos realizados profission­almente, persistem escândalos de abuso de menores.

Entendemos que a resolução da questão não se prende, unicamente, com o agravament­o das penalidade­s, é preciso debelar questões intrínseca­s e desenvolve­r campanhas de sensibiliz­ação sobre o problema.

Outrossim, vale destacar o papel a ser desempenha­do pelo INAC, devendo tomar as rédeas no seguimento dos processos judiciais sobre a presente questão. Não pode se limitar apenasa ajudar nas denúncias, urge chamar a si, no âmbito da advocacia, a publicidad­e dos desfechos judiciais, ajudando na prevenção geral e especial dos crimes. Deste modo, desincenti­vará os que pretendam navegar por essas práticas. Assim, as dimensões punitiva e socializan­te do Direito Penal seriam exemplarme­nte materializ­adas.

*Consultor do Gabinete da secretária de Estado para a Família e Promoção da Mulher e advogado estagiário, inscrito no Conselho Provincial de Luanda da OAA

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