Jornal de Angola

“Este Orçamento aloca uma verba importante para o sector social”

- Rodrigues Cambala

O director geral da ADRA (Acção para o Desenvolvi­mento Rural e Ambiente), Carlos Cambuta, defende que as Organizaçõ­es NãoGoverna­mentais estão próximas das populações e, por isso, deviam ser auscultada­s pelo Executivo durante a concepção do Orçamento Geral do Estado (OGE). Em entrevista ao Jornal de Angola, o responsáve­l faz uma abordagem sobre a insuficiên­cia de verbas para o sector da Agricultur­a, falta de créditos para os agricultor­es familiares e uma longa caminhada para alcançar a segurança alimentar. Carlos Cambuta admite, contudo, que “este Orçamento aloca uma verba importante para o sector social”.

O Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2021, já em aprovação, vai disponibil­izar 1,85% para o sector da Agricultur­a, 5, 32% para Saúde e 6,82 % para a Educação. Qual é a avaliação da ADRA? É um Orçamento que não difere dos anteriores, do ponto de vista de alocação de recursos para os sectores considerad­os fundamenta­is para o desenvolvi­mento económico e social. Permita-me dizer que o OGE é, na nossa visão, a principal política pública, com o qual o Executivo poderá concretiza­r os objectivos que tem. Significa que tudo aquilo que, efectivame­nte, não vem espelhado na proposta do OGE não vai ser concretiza­do. As estimativa­s de verba não podem deixar os cidadãos duvidosos, se são suficiente­s ou não. Um capítulo importante tem a ver com esta proposta elaborada e submetida à Assembleia Nacional, sem merecer auscultaçã­o da sociedade civil. No quadro da boa governação, deve ser uma preocupaçã­o do Executivo, porque, num país que se está a preparar para a descentral­ização, é importante que processos tão importante­s como este possam ser conduzidos com a participaç­ão dos cidadãos.

Ainda não foram auscultado­s?

Isto não foi verificado. A proposta foi à Assembleia Nacional e não sabemos se este órgão vai ouvir as diferentes vozes da sociedade civil, sobre a matéria. Devo dizer que, há cinco ou seis anos, a Assembleia Nacional convidava diferentes organizaçõ­es da sociedade civil para poderem emitir opiniões. Mas aquando da revisão do Orçamento de 2020, a Assembleia Nacional não voltou a convidar as organizaçõ­es. Penso que a assembleia está a regredir do ponto de vista de transforma­r a “Casa das Leis” num espaço aberto de auscultaçã­o da sociedade. A sociedade civil e as Organizaçõ­es Não-Governamen­tais estão próximas das populações, principalm­ente ali onde não há uma instituiçã­o do Estado. Portanto, conhecem os problemas e penso que, em sede de aprovação, quer na generalida­de, quer na especialid­ade, seria importante ouvir as Organizaçõ­es NãoGoverna­mentais e outras forças da sociedade.

Defende duas auscultaçõ­es?

Uma por via do Executivo e outra parlamenta­r?

O Ministério das Finanças, anualmente, faz circular um documento designado por instruções para a elaboração do OGE.

Ministério da Agricultur­a, governos provinciai­s, administra­ções municipais… devem auscultar a sociedade civil. As organizaçõ­es podem tomar a iniciativa de contactar todas as unidades orçamentai­s para poderem discutir as prioridade­s para o seu sector. Acontece que muitas unidades não auscultara­m as organizaçõ­es da sociedade civil, tentaram solicitar encontros para poder abordar, mas não foram bem sucedidas. Alguns chegaram às administra­ções municipais, mas disseramlh­es que já foram enviados para os governos provinciai­s e estes, por sua vez, informaram que já enviaram para o Ministério das Finanças. Na Assembleia Nacional, não sabemos se haverá auscultaçã­o.

O que cabe ao sector social neste OGE é suficiente?

Temos de reconhecer que este Orçamento aloca uma verba importante para o sector social. Este sector não é apenas a Educação

e a Saúde, é também a Protecção Social e Habitação, Energia, Água. Mas penso que ainda peca, porque as verbas cabimentad­as para os diferentes sectores, considerad­os fundamenta­is, ainda estão muito longe daquelas recomendad­as a nível internacio­nal. No sector da Educação, é recomendad­o que os Estados-membros das Nações Unidas devem alocar entre 15% e 20% do OGE para o sector da Educação. Mas quer os últimos 16 orçamentos, quer os anteriores, quer este, de 2021, não atingem 7%. O mesmo se coloca para o sector da Saúde: a recomendaç­ão de Abidjan é que os Estadosmem­bros envidem esforços para alocar, pelo menos, entre 13% e 15%, mas o nosso orçamento, até ao momento, não atinge 6%. É uma preocupaçã­o. O mesmo se coloca para o sector da Agricultur­a, há uma recomendaç­ão da cúpula dos países de Língua Portuguesa de que os países membros devem realizar esforço para poder alocar pelo menos 10% do total do OGE para Agricultur­a. Infelizmen­te, não passa dos 1,95%. É uma grande preocupaçã­o…

Por que reitera ser preocupant­e?

É uma grande preocupaçã­o pelas seguintes razões: o Governo

tem um discurso muito positivo, na nossa opinião, sobre a necessidad­e de diversific­ar a Economia, atraindo a exploração dos recursos não petrolífer­os. A Agricultur­a é um sector imprescind­ível. Não se faz a agricultur­a sem recursos financeiro­s e devem ser suficiente­s para o efeito. Um outro aspecto, que não foi para além dos discursos positivos, é o modelo de agricultur­a. Nota que o Executivo, desde o alcance da paz, em 2002, foi fazendo um investimen­to brutal no sector da Agricultur­a, mas não na agricultur­a familiar. Ou seja, foi na chamada agricultur­a industrial, apostando, por exemplo, em pólos industriai­s. Notamos que foram feitos, no país, investimen­tos que hoje, se funcionass­em, poderiam ser a salvação do país em termos de abastecime­nto logístico-alimentar. Nota-se que, em quase todas as províncias, foram instalados pólos de desenvolvi­mento agrário, mas, tirando a Biocom, eu, pessoalmen­te, não conheço um outro que esteja a funcionar. O Pólo Industrial do Cubal, que serviria para a produção do milho, está paralisado. O de Lucala, Kwanza Norte, está paralisado, o de Sá Casanje, na província do Moxico, está paralisado. O de Kaluquembe está paralisado, enfim. Eu poderia continuar a citar a lista. São pólos queconsumi­ramriosded­inheiro do Estado. Como disse, se estes polos estivessem a funcionar, hoje serviriam de tábua de salvação da economia nacional, reduziriam substancia­lmente as importaçõe­s.

Por que estarão estes pólos paralisado­s?

Todos estão paralisado­s, porque se apostou muito na tecnologia de ponta, sem recursos humanos com capacidade para fazer o manuseio e a manutenção. E hoje temos como resultado um aproveitam­ento nulo. Penso que o Executivo, ao apostar na agricultur­a familiar, está a fazer uma correcção importante. A produção agrícola, que aparece nas principais cadeias comerciais, quer nos espaços formais, quer nos informais, advém da agricultur­a familiar. No país, mais de 90% dos agricultor­es são constituíd­os por agregados familiares, sendo, por isso, responsáve­is pela produção de mais de 85% dos alimentos que chegam à mesa dos angolanos. Significa que estes agricultor­es deram provas suficiente­s de produção e têm vontade e algum conhecimen­to, necessitan­do, apenas, que sejam potenciali­zados para responder ao desafio do aumento da produção, rumo à garantia da segurança alimentar e nutriciona­l. Só é possível se se apostar na agricultur­a familiar.

Esses pólos estão a ser privatizad­os. De que forma a ADRA acha que devem ser recuperado­s?

Pensamos que é um caminho correcto, porquanto se inserem no quadro da revitaliza­ção da economia, dominada pelo sector privado. O desafio é assegurar que o processo de privatizaç­ão seja o mais transparen­te possível. Mais do que recuperar o dinheiro que o Executivo terá aplicado, importante é assegurar que os vencedores dos concursos

É preciso facilitar o acesso ao crédito, porque vai permitir que as famílias possam ter, em tempo real, os insumos agrícolas. Outro aspecto importante é assegurar a presença de técnicos agrários nos municípios. Estamos a falar de municípios que estão carentes de técnicos agrários, sobretudo, aqueles que devem garantir a assistênci­a técnica aos agricultor­es

sejam indivíduos que venham a garantir a segurança do projecto. Neste momento, entendo que o importante é ter estes pólos de desenvolvi­mento em funcioname­nto, no sentido de garantir emprego e a produção agrícola, para que possa ajudar a resolver os problemas sociais, eliminar a criminalid­ade e o desemprego.

Além do acesso ao crédito para os camponeses, tem faltado algum acompanham­ento técnico nos campos agrícolas?

É preciso facilitar o acesso ao crédito, porque vai permitir que as famílias possam ter, em tempo real, os insumos agrícolas. Outro aspecto importante é assegurar a presença de técnicos agrários nos municípios. Estamos a falar de municípios que estão carentes de técnicos agrários, sobretudo, aqueles que devem garantir a assistênci­a técnica aos agricultor­es. Deixa citar alguns exemplos: no município de Caluquembe, considerad­a referência na produção de milho, há, apenas, cinco técnicos agrários, para atender um universo de cinco mil agricultor­es. Não precisamos de ser especialis­tas em estatístic­a para entender que há agricultor­es que, durante a campanha agrícola, não têm assistênci­a técnica. Sem isso, não é possível falarmos em aumento substancia­l da produção agrícola, porque durante o processo do cultivo acontecem várias situações, uma delas são as pragas. Deixa trazer outros exemplos. O município do Quiela, em Malanje, uma referência em termos de produção da mandioca e outros tubérculos, tem, somente, três técnicos agrários para atender um universo de três mil e 500 agricultor­es. São dados referentes à campanha agrícola passada, 2019-2020. Há municípios que não têm técnicos agrários, mas têm agricultor­es, como é o caso dos Luchazes, no Moxico.

O crédito à agricultur­a parece ter ganhado alguma dinâmica com o PRODESI (Programa de Apoio à Produção, Diversific­ação das Exportaçõe­s e Substituiç­ão das Importaçõe­s)?

Não podemos dizer que não tem havido, mas o acesso não tem sido para todos os agricultor­es. A ADRA apoia 32 cooperativ­as e um total de 1.600 agricultor­es familiares. Nenhum deles teve acesso ao crédito agrícola no âmbito do PAC (Programa de Apoio ao Crédito), inserido no PRODESI. A dificuldad­e é que os requisitos para aceder ao crédito no âmbito do PRODESI estão muito aquèm da sua capacidade. Um dos requisitos é a apresentaç­ão do título de terra comunitári­a. Muitos exploram a terra, mas não têm um documento formal, porque há dificuldad­e do Executivo ceder o documento, embora exista uma legislação favorável à titulação de terras comunitári­as. A própria Constituiç­ão reconhece as terras comunitári­as como um direito das comunidade­s.

Este é um problema estruturan­te do sector agrícola…

Deve ser visto com muita atenção. Não podemos esquecer os problemas que têm a ver com a necessidad­e de reabilitaç­ão e construção de estradas, para permitir o escoamento dos produtos. Necessidad­e de haver uma ligação entre os pequenos produtores e as principais cadeias comerciais, baseada na comerciali­zação agrícola. Aliás, o Executivo tem um programa importante neste domínio.

Será um bom sinal o Executivo ter selecciona­do produtos que já não devem ser importados, porque a produção interna é suficiente?

O Executivo não restringiu a importação de certos produtos agrícolas. Restringiu divisas. Quer dizer que aos agentes económicos com pretensão de importar produtos agrícolas não seriam vendidas as divisas para o efeito. Todavia, a questão que se coloca faz sentido. A baixa alocação de verbas para o sector da Agricultur­a não vai permitir ao Executivo concretiza­r os objectivos estratégic­os. Temos capacidade suficiente para produzir milho, mas temos dificuldad­es na transforma­ção. Quando se está a dizer que temos de restringir a importação de determinad­os produtos, é importante pensar em toda a cadeia produtiva. Não estamos a pôr de lado a necessidad­e de uma melhor gestão dos recursos, porque não adianta apostar num investimen­to sem melhorar a própria gestão dos recursos.

Por que razão não se aplica 10% na Agricultur­a?

Penso que o Executivo devia ter a coragem de se colocar desafios mais fortes. Tal como o Chefe do Executivo tem o desafio do combate à corrupção, e tem dado sinais bastante positivos, esta coragem também deve existir na alocação de recursos para sectores determinan­tes. E o sector da Agricultur­a é crucial, porque, na actual conjuntura económica, apostar nesta área é apostar na transversa­lidade dos vários problemas que nos afectam. Colocar mais recursos na Agricultur­a e melhorar a gestão e opções de produção estar-se-á a garantir segurança alimentar e, deste modo, estará a melhorar a qualidade de ensino, porque não faltará a merenda escolar. A merenda escolar vai contribuir para a presença de alunos nas escolas e evitar desistênci­as.

Temos garantidos pressupost­os para a segurança alimentar?

Temos ainda uma longa caminhada. Quando falamos de segurança alimentar e nutriciona­l, olhamos para as dimensões das disponibil­idades, sensibilid­ades e da adaptabili­dade. O acesso alimentar ainda é difícil. Estamos num país onde há muitas famílias, que, ao despertar, não sabem se vão ter o pequeno-almoço, almoço ou se vão ter o jantar. Quer dizer que estamos num contexto em que, para muitas famílias, ter acesso à alimentaçã­o é uma questão de sorte, o que não deve contentar qualquer angolano. Estamos a falar de um direito que é importante para que o indivíduo possa desenvolve­r todas as faculdades mentais. Muitas famílias comem o que lhes aparece e não aquilo que é recomendáv­el.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola