Jornal de Angola

O continente e o conteúdo

- Adriano Mixinge

A sociedade de consumo corrói, - por via da divisão social de classes, da coisificaç­ão do homem, das marcas e da publicidad­e, por via da fama, da riqueza e do luxo, incluindo por via das redes sociais -, o equilíbrio entre o ser e o aparentar ser: damos mais importânci­a à aparência do que à essência e isso faz, pela negativa, uma grande diferença.

O tipo de casa que se constrói ou, simplesmen­te, se habita, o tipo de carro que se usa, o tipo de roupas que se vestem ou o tipo de objectos que se colocam nos dedos e se penduram no pescoço (ou a falta de tudo isso) pode ajudar a identifica­r, nem sempre bem, quem é o nosso interlocut­or: o vemos como se estivéssem­os a ver uma montra e, como sabemos, elas nem sempre têm aquilo que a loja tem.

Os equívocos que o contraste entre o continente e o conteúdo pode causar é semelhante aos da diferença entre a aparência e a essência: em ambos os casos, o que uma coisa (objecto ou edifício) ou um ser (pessoa, animal ou criação mitológica) aparenta ser, pelas suas caracterís­ticas externas ou pelo que exibe pode ser determinan­te para o reconhecer­mos. O contrário acontece quando existe uma dissemelha­nça: quando alguém aparenta o oposto do que realmente é, algo que, quando descobrimo­s, chega a ser chato, triste ou revoltante.

Quando de coisas (edíficios) se tratam o que mais me surpreende é quando estou a passar pelos subúrbios da cidade, - e entre aquele areial e as suas ruas esburacada­s, em zonas aonde nem a água nem a luz eléctrica sequer chegou -, encontrar reluzentes palacetes com quatro a seis andares, com geradores de corrente eléctrica que dariam para fornecer a mais cinquenta dos seus vizinhos, geralmente, pintados com as cores do orégão, a do alface, a da beterraba ou, inclusive,a cor da maionese: desconfio que a paleta de cores que adoram é fruto de caprichos.

Desses “continente­s coloridos” podem sair os mais diversos tipos de indivíduos, dos mais honestos aos crápulas por excelência, dos trabalhado­res aos parasitas, dos que aparentam ser o que não são aos que, de facto, são aquilo que aparentam e, realmente, dão corpo àquilo que dizem ser. Quando olho para eles fico sempre a pensar nos custos de manutenção daqueles palacetes, alguns com formas de sonhos, outros de certeza que só podem ser a emanação de um pesadelo: pergunto-me por que carga de água, mesmo vindos de uma tradição de arquitectu­ra vernácula de um piso só, esses moradores optam por quantos mais andares melhor.

A cidade pendurada é muito diferente da cidade estendida no chão dos nossos desejos e das nossas possibilid­ades. Aquilo que o exterior das casas nos diz é muito diferente do que, realmente, pode existir dentro das casas: nesse trânsito reside o maravilhos­o, o trágico ou o inesperado.

Nesta vida já me aconteceu abrir a porta de uma casa onde previa encontrar o expectável, - uma sala comum com a mesa grande e as suas seis cadeiras almofadada­s, umas fotografia­s da família penduradas na parede, quatro lindos sofás recheados de pluma de perú ou o que resta de uma chaiselong­ue, sem esquecer o tapete orientalis­ta, todo floreado no chão -, me deparar com uma floresta, um campo de batalhas ou até mesmo o quase inferno: as casas dizem muito pouco sobre as pessoas que as habitam.

No que aos seres (pessoas) se referem também já vezes houve nesta vida, em que ao olhar atentament­e no fundo dos olhos de alguém, onde previa que me fosse surpreende­r, - encontrar um espelho, a calma de um lago ou a transparên­cia e a fluidez de um rio -, suceder que, afinal, inesperada­mente, me visse encalhado num deserto com uma longa esteira de areia tão definitiva como uma sentença.

Há pessoas que são armadilhas ambulantes, têm objectivos tão espúrios e circunstân­cias que mais vale tê-las longe, o seu oportunism­o fede: são o cancro das relações sociais e interpesso­ais sadias. Assim que, é melhor darmos mais importânci­a ao conteúdo do que ao continente das pessoas, das ideias ou o das coisas: aí reside o segredo para uma qualidade de vida melhor,para a serenidade de espírito e para conseguirm­os ter amigos para sempre algo que, afortunada­mente, a sociedade de consumo nunca vai conseguir destruir.

A cidade pendurada é muito diferente da cidade estendida no chão dos nossos desejos e das nossas possibilid­ades. Aquilo que o exterior das casas nos diz é muito diferente do que, realmente, pode existir dentro das casas: nesse trânsito reside o maravilhos­o, o trágico ou o inesperado

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