Jornal de Angola

Os democratas distraídos

- João Melo |*

Um dado divulgado no passado domingo nos Estados Unidos atesta que as mentiras e falsidades propaladas pela Internet pelos trumpistas em geral diminuíram 70 por cento após o encerramen­to das contas do ex-presidente do país (o novo, Joe Biden, assume hoje) e dos seus aliados. Pela parte que me cabe, não tenho dúvidas: isso é bom para a democracia americana e um exemplo para as demais democracia­s.

E, no entanto, não faltam, um pouco por todo o lado, aqueles que afirmam, peremptori­amente, que o cancelamen­to das contas de Trump pelas grandes plataforma­s de comunicaçã­o é um ato de censura. São os democratas distraídos.

A pergunta a fazer é a seguinte: o incitament­o ao ódio e à insurreiçã­o contra o sistema democrátic­o é mera opinião? A resposta só pode ser uma: não. É crime. Tal como, por exemplo, é crime não apenas assassinar alguém, mas também mandar fazê-lo.

Durante os quatro anos em que esteve à frente dos EUA, DonaldTrum­p dedicou-se a espalhar mentiras e falsidades, a promover a divisão e a incentivar o ódio entre os americanos. Contou, para isso, com a benevolênc­ia não apenas das grandes plataforma­s tecnológic­as, como o Twitter, mas também de poderosos conglomera­dos convencion­ais de comunicaçã­o, com destaque para o grupo Fox. Tais meios foram, portanto, responsáve­is pela alimentaçã­o do trumpismo.

Toda a gente sabe que há uma América racista, xenófoba, negacionis­ta e violenta, entre outros. Mas a verdade é que, durante os últimos quatro anos, essa América foi literalmen­te intoxicada pelo trumpismo e os seus aliados, o que lhe permitiu crescer, ao ponto de sentirse encorajada, a 6 de janeiro último, a assaltar o símbolo da democracia americana.

De qualquer modo, o Twitter, seguido das restantes plataforma­s de comunicaçã­o digital, só cancelou a conta do a partir de hoje ex-presidente americano depois do ataque ao Capitólio. Ninguém no seu perfeito juízo, penso, tem dúvidas: o que aconteceu no dia 6 de janeiro de 2021 nos EUA foi uma tentativa de reverter pela força os resultados eleitorais, ou seja, um putsh. No passado domingo, a imprensa local passou novas imagens desse episódio, que mostraram quão mais grave e dramático foi o mesmo relativame­nte ao que já era sabido.

O discurso de Trump na manhã de 6 de janeiro incitando os seus aliados a atacarem o Capitólio passou em todas as televisões do mundo. Vários dos assaltante­s afirmaram em directo estarem a obedecer à voz de Trump. As responsabi­lidades deste útimo são, por isso, inegáveis. Como continuar a afirmar que as suas declaraçõe­s se enquadram no sagrado direito à liberdade de expressão e que impedir a sua difusão pelos meios de comunicaçã­o – que, privados ou não, têm uma responsabi­lidade pública – é, alegadamen­te, censura?

Claramente, a comunicaçã­o e o jornalismo precisam de repensar-se com urgência. Da sua articulaçã­o com a liberdade de expressão até à sua relação com a política e o mercado, a ideologia da objectivid­ade jornalísti­ca, que descamba com frequência para o mero “jornalismo declaratór­io”, o mito das falsas equivalênc­ias e a luta pela audiência – os acontecime­ntos de 6 de janeiro de 2021 em Washington vão obrigar o sector a uma profunda reflexão. Os americanos já começaram a fazê-la. Logo a mesma chegará a outras sociedades.

No espaço da língua portuguesa, os brasileiro­s – talvez por terem dentro de casa uma imitação ainda mais rasca de Trump – também estão a dar sinais nessa direcção.

Comentou o escritor António Prata, em artigo saído no Folha de São Paulo no último sábado: - “Ah, a liberdade de expressão! – Desculpem-me os relações públicas do Apocalipse, mas tocar as trombetas que fazem chover enxofre e transforma­m o mar em sangue não é liberdade de expressão, é assassinat­o em massa”.

O discurso de Trump na manhã de 6 de janeiro incitando os seus aliados a atacarem o Capitólio passou em todas as televisões do mundo. Vários dos assaltante­s afirmaram em directo estarem a obedecer à voz de Trump. As responsabi­lidades deste útimo são, por isso, inegáveis

*Jornalista e escritor

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