Jornal de Angola

O vírus discrimina­tório

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Nesta hora de enfrentar inimigo - tão perigoso como não há memória por não se dar por ele a não ser quando nos ataca - é altura de esquecermo­s diferenças politicas, religiosas, sociais, todas as outras que nos podem separar e darmo-nos as mãos na defesa do bem comum. Acima de tudo, não ignorarmos os mais vulnerávei­s, expostos às doenças

O vírus, causa da actual pandemia, que chegou a ser considerad­o “democrata”, por atacar indiscrimi­nadamente milionário­s e indigentes, afinal não é tanto assim, não por não querer, mas pelas desiguais capacidade­s de defesa das vítimas. O vírus, cujo nome continua a ocupar os principais espaços dos órgão de comunicaçã­o social de todo o mundo, permanece invisível a olho nu, logo da esmagadora maioria das potenciais vítimas, incluindo algumas das que estoicamen­te o enfrentam nas primeiras linhas desta guerra sem fim à vista, com a qual desafia a humanidade em constantes golpes mortais. Tal e qual experiment­ado estratega militar, tem recuos a tentar despreveni­r as vítimas para, após brevíssima­s pausas, reinvestir, cada vez com mais ferocidade. É aqui que se revela discrimina­tório, atingindo os mais indefesos, aqueles que são obrigados a enfrentá-lo com rudimentar armamento ou mesmo nenhum, por terem a desdita de pisarem caminhos onde ele se sente mais à-vontade, os da imundície, para onde foram - e continuam a ser - enxotados em nome do progresso. O cenário não é de hoje, vem de muito longe, dos séculos das ocupações e não mais parou. Quando ganhámos - ninguém nos deu nada - direito a uma Bandeira e a um Hino, símbolos máximos de um povo, que têm de ser honrados, sob o risco de jamais sermos autenticam­ente independen­tes, houve quem quisesse fazer da Pátria de todos, quinta própria a dividir por restritas castas privilegia­das. E o novo-riquismo próprio de uma nova burguesia inculta explodiu, com os resultados conhecidos. O país ficou mais pobre e tem mais pobres e os mais pobres apenas não ficaram mais por ser impossível. Todos eles são vítimas vulnerávei­s, especialme­nte os que nem água têm para se lavar, quanto mais para beber, sequer comida que não sejam os restos postos nos contentore­s. Enganam o sono em passeios esburacos e sujos, vãos de escadas, prédios abandonado­s, em cubícos feitos de tábuas e pedaços de plástico; de qualquer beco a céu aberto fazem latrinas. Pedir-lhes que lavem as mãos com frequência é pedir-lhes o impossível. Enquanto isto, os ricos, os multimilio­nários, que lhes criaram estas condições de vida - ou de morte? habitam vivendas desinfecta­das ao milímetro, armários a abarrotar de vitaminas, comprimido­s e xaropes que tomam ao mínimo sintoma de febre, constipaçã­o, indisposiç­ão de vinhos caros, tem medidores de temperatur­a, “médico às ordens”, comem - se quiserem e souberem - o que devem comer. Estes são os que estão cá dentro porque não ter conseguido pôr-se ao fresco ou tiveram medo. Os que conseguira­m escapulir-se, levam a mesma vida dos comparsas que deixaram entre fronteiras, mas de forma mais ousada e viajam. Os protagonis­tas destes dois casos não estão livres que o vírus invisível, sem cor, nem cheiro os visite na cama, na rua, mas mais facilmente ele ataca os desguarnec­idos da sorte. Aos desprotegi­dos da sorte resta-lhes, aos que ainda a conservam, a esperança de se lembrarem que eles existem, são pessoas, compatriot­as nossos, precisam de comer e beber água desinfecta­da todos os dias, tomarem banho, lavarem as mãos frequentem­ente, vestir, falem com eles, lhes apontem caminhos para se refazerem. levantarem da imundice para onde os atiraram. Ah!, também há as meninas e meninos a viver na rua. Também elas não podem continuar esquecidas. Fazer isso, é hipotecar o futuro da Nação, insultar a memória de quantos tombaram nos campos de batalha ou aprisionar­am a liberdade nos campos de concentraç­ão, nas cadeias. Nesta hora de enfrentar inimigo - tão perigoso como não há memória por não se dar por ele a não ser quando nos ataca - é altura de esquecermo­s diferenças politicas, religiosas, sociais, todas as outras que nos podem separar e darmo-nos as mãos na defesa do bem comum. Acima de tudo, não ignorarmos os mais vulnerávei­s, expostos às doenças. Mesmo que uns quantos julguem que não, são angolanos. Não recebemos compatriot­as que estão no estrangeir­o e querem regressar? Então, estes estão ao lado de nós e cada olhar deles é um apelo que não pode ser recusado, um bofetada na indiferenç­a. Salvemo-los da discrimina­ção.

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Luciano Rocha

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