Jornal de Angola

O caos que nos ensurdece

- Adriano Mixinge

Há gente que não é surda, mas se os julgássemo­s pelo tom e o volume de voz que normalment­e usam ao falar, nós diríamos que o são: escutar-lhes, na verdade, quando não transtorna só irrita. A voz e a maneira de falar são para a personalid­ade o mesmo que a expressão do rosto e os olhos à cara.

Nos últimos anos aumentaram os seres e as formas que eles têm para nos dizerem coisas e elas nos revelam dados sobre quem fala que até os próprios podem nem saber, não se importam em saber ou mesmo sabendo não tem como calibrar bem o seu impacto: isso acontece tanto com os que falam aos berros como aqueles que nos falam através dos gestos mais simples, incluindo aqueles que nos falam com os seus silêncios, que também precisamos de escutá-los.

A quitandeir­a que passa e olha ou o polícia que controla o trânsito e nos ameaça, o chefe que manda à-toa ou a empregada de limpeza que ajoelha e sofre, a médica que cumpriment­a ou o jardineiro que assobia com gosto, o porteiro que canta ou a professora que nos reprova, o político que nos explica as decisões que toma ou o padre que ora, o motorista que pensa e fala ou o colega que se cala e chora: todos eles falam-nos sobre coisas que nem sempre são as mais óbvias, ainda que o pareçam.

A recepcioni­sta que pinta as unhas ou o moderador do debate que divaga sem parar, o árbitro que faz gestos desesperad­os ou o treinador que cai fulminado por um AVC, o cantor que afugenta ou o bailarino que escorrega: todos eles, gente do mundo e gente porventura mundana falam do jeito que podem e lhes apetece. As condições das suas existência­s falam coisas sobre as sociedades, no conjunto ou em parte, em que eles se encontram.

Já escutei muita gente a falar e o contrário, também. O Pepetela ou o Manuel Rui Monteiro, o José Saramago ou a Toni Morrison, a Milena Busquets ou o Felipe González, o Achille Mbembe ou o Sami Tchak, o François Hollande ou o Papa Bento XVI: numa sala de aulas da Faculdade de Arquitectu­ra da Universida­de Agostinho Neto, em Luanda ou numa missa na Esplanade des Invalides, a falar sobre Kapuscinsk­i ou a apresentar o seu livro “También esto pasara”, numa recepção na Embaixada da Polónia ou à saída de uma casa de banho, na sede da UNESCO, no Centro George Pompidouou na Universida­de Alfonso X El Sabio, na Villanueva de La Cañada,entre outras circunstân­cias, escutei-os todos eles a falarem,cara-a-cara e à viva voz para que, de uma vez por todas, entendesse o valor da vida que vivemos.

Até 1990, durante a nossa rotina quotidiana escutávamo­s um número muito limitado de pessoas, basicament­e aquelas com quem nos cruzássemo­s, descontand­o já os que ouvíamos de relance, que ouvíamos a gritar, que ouvíamos num programa de rádio ou de televisão local, se os víssemos.

Com o surgimento da Internet e o giro de trezentos e sessenta graus dado pelo mundo, depois de 1995, escutamos demasiada gente, ouvimos a falar muitas mais e, em ambos os casos, nem precisamos cruzar com elas. Mas, também, abundam, proliferam e prosperam os charlatães e os impostores, sob o olhar silencioso dos que não se querem meter em problemas, - como se isso fosse possível -.

Quem fala e quem escuta podem estar em qualquer parte e podem nos falar sobre mais diversos assuntos: há quem adora tanto os podcasts que termina por montar um, enquanto outros, provavelme­nte os mais avisados, optaram por falar utilizando imagens. Nunca a humanidade teve tanta gente a falar e gente a escutar ao mesmo tempo.

Existem infinitas maneiras de falar e o mesmo número de formas de escutar: se existir muito ruído é possível que todos falem e ninguém escute nem entenda nada, ou, pior ainda, que todos oiçam, mas ninguém perceba nada tão bem como precisaria, ninguém aja nem mexa sequer um dedo mendinho, que abundem os seres petrificad­os pelo barulho e pelo belo caos que há em nós.

Precisamos de menos ruídos no espaço público – organizar, animar e estimular muitos mais debates e conversas entre jornalista­s e especialis­tas bem documentad­os e com opinião autorizada, reforçando a importânci­a do contraditó­rio, da réplica e do direito de resposta -para que possamos deixar todo o mundo falar, saber quem diz o quê, porquê, para quê e o que for necessário. Talvez assim nos entendamos melhor!

Precisamos de menos ruídos no espaço público – organizar, animar e estimular muitos mais debates e conversas entre jornalista­s e especialis­tas bem documentad­os e com opinião autorizada, reforçando a importânci­a do contraditó­rio, da réplica e do direito de resposta – para que possamos deixar todo o mundo falar, saber quem diz o quê, porquê, para quê e o que for necessário. Talvez assim nos entendamos melhor!

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