Jornal de Angola

O que se passa em Cabo Delgado?

- João Melo |*

A pandemia que mantém o mundo quase paralisado há mais de um ano parece ter-nos feito esquecer de que, apesar de tudo, a vida continua, com os seus momentos de normalidad­e e, por momentos, as suas pequenas alegrias, mas – sobretudo isso – com as suas iniquidade­s e os seus horrores. Um desses horrores é o conflito em Cabo Delgado, Moçambique.

Confesso: também estou incluído entre aqueles que, sabendo da existência desse conflito num país que nos habituámos a considerar irmão, pouco ou nada sabe quer da sua natureza quer dos seus verdadeiro­s contornos. O que se julga saber é que o fundamenta­lismo islâmico estará por detrás do que se passa hoje em Cabo Delgado. É pouco.

Repugna-me observar, neste momento, os jornalista­s ocidentais a acusarem as autoridade­s moçambican­as de sempre terem olhado com suposta indiferenç­a para os acontecime­ntos que há mais de três anos começaram a germinar naquela região. A verdade é que, para a imprensa mundial, Cabo Delgado sempre foi apenas uma nota de rodapé. Isso inclui também, diga-se, a própria imprensa africana.

No caso da imprensa portuguesa, por exemplo, onde o tema tem sido manchete nos últimos dias, o que espoletou a cobertura unânime do assunto e o sinal de alerta a que temos assistido nos últimos dias foi o ataque dos terrorista­s à cidade de Palma, na semana passada, onde morreu um cidadão português. Isso diz tudo sobre as suas motivações.

Tem de ser dito, por conseguint­e: em relação à situação em Cabo Delgado, a indiferenç­a do mundo (a começar pelos países vizinhos de Moçambique e pelos países membros da CPLP) é geral.

E, no entanto, é verdade que o modo, digamos assim, naíve com que as autoridade­s moçambican­as continuam a lidar com este problema é, no mínimo, estranho. Lembro-me, a propósito de uma conversa que tive no final de 2019 com uma deputada angolana que me contou uma conversa que, numa reunião de parlamenta­res da SADC, tinha mantido com colegas de Moçambique sobre a instabilid­ade que já se fazia sentir em Cabo Delgado. A leitura dos deputados angolanos segundo a qual o fundamenta­lismo islâmico estava por detrás dos acontecime­ntos na região foi liminarmen­te refutada – disse-me ela – pelos seus colegas moçambican­os.

Isso trouxe-me à memória outra lembrança, anterior, acerca da profunda diferença da forma como a guerra civil terminou em Angola e em Moçambique. Para muitos angolanos, sempre fez espécie uma guerra terminar com uma espécie de “empate técnico”. É verdade que todas as guerras acabam numa mesa de negociaçõe­s, mas, quase sempre, com um vencido e um vencedor. O facto de esse não ter sido o caso de Moçambique talvez explique - apenas em parte, claro - a persistênc­ia de grupos armados naquele país, à margem, hoje, da própria Renamo.

A terminar, não cabe a um observador ocasional, como eu, da situação moçambican­a dar receitas para resolver o problema de Cabo Delgado ou quaisquer outros relacionad­os com a mesma. Segundo foi noticiado, a África do Sul pondera uma intervençã­o militar em Palma, se as autoridade­s do país o solicitare­m. Perante as óbvias fragilidad­es das forças militares moçambican­as, uma intervençã­o internacio­nal, de preferênci­a com cobertura institucio­nal (SADC ou ONU), parece muito mais recomendáv­el do que o recurso a empresas de mercenário­s. Mas o problema está longe de ser apenas militar.

Para muitos angolanos, sempre fez espécie uma guerra terminar com uma espécie de “empate técnico”. É verdade que todas as guerras acabam numa mesa de negociaçõe­s, mas, quase sempre, com um vencido e um vencedor. O facto de esse não ter sido o caso de Moçambique talvez explique - apenas em parte, claro - a persistênc­ia de grupos armados naquele país, à margem, hoje, da própria Renamo

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