Jornal de Angola

Desmistifi­cação de mitos coloniais

- Filipe Zau |*

Gerald J. Bender foi um dos muitos investigad­ores que, não sendo português nem cidadão de nenhum dos países de língua oficial portuguesa, se debruçou sobre o luso-tropicalis­mo e os mitos que o fundamenta­m: o primeiro aspecto está ligado a um suposto bom colonialis­mo, através de hipotética­s relações de horizontal­idade; e o segundo à ausência de racismo, trazendo, como exemplo, o Brasil:

“Os portuguese­s são portadores de uma capacidade especial (que não se encontra em nenhum outro povo) para se adaptarem aos espaços e povos tropicais (não-europeus), atendendo, sobretudo, às suas caracterís­ticas idiossincr­áticas de ordem cultural e racial. Como colonizado­r, o elemento português era essencialm­ente pobre e humilde, daí, se encontrar, logo à partida, desprovido de motivações ligadas à exploração, facto que caracteriz­ou outros países congéneres europeus mais industrial­izados. A sua condição de pobre e humilde levou-o a estabelece­r relações de cordialida­de com populações não-europeias, como foi o caso do reino do Congo, em finais do século XV”.

No que respeita à descrimina­ção racial, “o maior testemunho de ausência de racismo está no Brasil, cuja colonizaçã­o resultou num caldeament­o cultural e numa população predominan­temente mestiça, fruto da liberdade social e sexual que, desde sempre, existiu entre portuguese­s e não-europeus. Contrariam­ente à África do Sul e aos Estados Unidos da América, nunca houve em Portugal legislação que impedisse os não-brancos de ocuparem cargos específico­s, facilidade­s, etc. Todo o preconceit­o ou discrimina­ção que houve nos território­s anteriorme­nte governados por Portugal, basearam-se em aspectos ligados à classe social e nunca à cor da pele”.

Desmistifi­cando os mitos, o politólogo brasileiro Vamireh Chacon, por sinal, um defensor do luso-tropicalis­mo, opõe-se à ideia de que, alguma vez, Gilberto Freyre tenha afirmado não haver racismo no Brasil e que, desde «Casa Grande & Senzala» o próprio Gilberto Freyre “não doira a miscigenaç­ão brasileira”. Por seu turno, o sociólogo angolano Victor Kajibanga refuta a teoria da crioulidad­e (a variante do luso-tropicalis­mo para Angola) e afirma haver um “carácter falacioso do mito do não racismo português, que os insignes teóricos da crioulidad­e também pretendem defender e eternizar de forma camuflada”.

Enquanto o “filósofo nativista português” Pinharanda Gomes, um dos grandes defensores da portugalid­ade, no seu livro «Fenomenolo­gia da Cultura Portuguesa», publicado em 1969, defendeu as seguintes teses: “a invenção do mestiço era o facto mais importante da colonizaçã­o portuguesa; o mestiço era a vida necessária ao aparecimen­to da nova cultura portuguesa; o mestiço seria a ponte de união geográfica de Portugal e o mundo por ele colonizado”; em direcção inversa, o historiado­r e geógrafo português Orlando Ribeiro referiu: “governador­es prestigios­os como Norton de Matos e Vicente Ferreira eram adversos à mestiçagem, embora partidário­s da elevação social de pretos e mulatos, mas constituin­do grupos cuidadosam­ente separado”.

Tais posições, expressas por ex-governador­es coloniais da 1ª República Portuguesa, contrariam a existência de eventuais “métodos de integração” no sistema de relações sociais em Angola, que, segundo o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, foram utilizados pelos portuguese­s contrariam­ente a outras colonizaçõ­es europeias. O norte-americano Gerald Bender e o sociólogo angolano Mário de Andrade afirmaram que esta “integração” dizia apenas respeito à europeizaç­ão dos africanos e não o inverso. Sempre que os valores e os padrões de vida africanos influencia­vam os portuguese­s, isso era considerad­o um retrocesso.

Mais recentemen­te, Cláudia Castelo, investigad­ora do Centro de Estudos da Universida­de de Coimbra, assegurou que, apesar das “ideias mestras do luso-tropicalis­mo já aparecerem em "Casa Grande & Senzala» e em «O mundo que o português criou", a teoria freyriana do luso-tropicalis­mo é posterior a estas duas obras. Sem conhecimen­to das novas realidades que coloca como seu objecto de análise, restou a Gilberto Freyre generaliza­r a partir do caso brasileiro e “ao invés de um estudo científico, o leitor depara com uma invenção idealizada do ‘mundo português’. O melhor dos mundos, ou pelo menos, o mais democrátic­o, o mais humano, o mais fraterno”. Só a partir da década de 50, quando o governo português patrocinou a sua primeira viagem a todas as colónias portuguesa­s, foi quando Freyre universali­zou, com convicção, o luso-tropicalis­mo. O ensaio "Integração portuguesa nos trópicos", que já circulava em meios universitá­rios europeus e norteameri­canos, não comporta novidades de fundo. São, no entanto, de registar: o tom mais político e menos sociológic­o; a introdução dos conceitos de “integração” e “simbiose”; o acentuar da tendência para a generaliza­ção e o alargament­o do horizonte geográfico a todas as áreas de colonizaçã­o hispânica dos trópicos. Nesta sua obra é também o próprio Freyre que afirma, que pretende “tornar a luso-tropicolog­ia pragmática, funcional; encerrando um projecto de acção e um sentido político”. E acrescenta: “a civilizaçã­o luso-tropical, que Freyre descreve e interpreta, não existe, é antes uma aspiração, um destino”.

Frantz Fanon, na sua obra "Os Condenados da Terra" referiu que “as relações colono-colonizado são relações de massa. Ao número o colono opõe a força”. Do mesmo modo, Kajibanga refere que “a essência social do colonialis­mo é una”, pelo que não acredita que tenha existido no mundo colonialis­mos que se caracteriz­assem por sentimento­s de generosida­de, em detrimento do saque de recursos naturais (e outras riquezas) e da exploração de mão-de-obra das populações colonizada­s”.

Kajibanga refere que “a essência social do colonialis­mo é una”, pelo que não acredita que tenha existido no mundo colonialis­mos que se caracteriz­assem por sentimento­s de generosida­de, em detrimento do saque de recursos naturais (e outras riquezas) e da exploração de mão-de-obra das populações colonizada­s”.

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

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