Jornal de Angola

A mulher que sempre quis ser polícia

- Edna Cauxeiro

Tinha oito anos e estava na condição de deslocada de guerra, quando viu um grupo da Polícia de Intervençã­o Rápida (PIR) desembarca­r de um helicópter­o, no Aldeamento 7, município do Waku Kungo, no Cuanza-sul, para socorrê-la e à sua família. A menina, que se refugiou na mata, ao lado dos pais, irmãos e outros familiares, olhou, com admiração, para a bravura dos efectivos e tomou a maior decisão da sua vida: tornar-se Polícia de Intervençã­o Rápida. Actual comandante da 51ª Esquadra da Cidade do Kilamba, Victória Augusto, "Vilma", para os mais chegados, abriu o seu coração ao Jornal de Angola e lembrou outra particular­idade, que também lhe influencio­u o futuro: “quando pequena, quis sempre brincar de polícia, com os rapazes, os meus primos e os meus irmãos.”. Licenciada em Antropolog­ia pela Universida­de Agostinho Neto, frequenta o mestrado em segurança Pública no Instituto Superior de Ciências Policiais e Criminais, Osvaldo Serra Vandúnem, e pretende fazer doutoramen­to, na mesma área, a partir do próximo ano.

Escolheu ser polícia ou a Polícia escolheu a comandante?

Apaixonei-me pela farda preta, da Polícia de Intervençã­o Rápida (PIR), muito cedo, na infância. Quando pequena, quis sempre brincar de polícia, com os rapazes, os meus primos e os meus irmãos. Vivíamos numa rua em que todos éramos familiares. Nas brincadeir­as, só eu podia ser chefe, ser comandante. Se não fosse assim, eu não aceitava brincar.

É natural do Waku Kungo, no Cuanza-sul. É lá que lhe nasceu a paixão pela farda?

Sim. Estávamos em guerra. Na altura, eu tinha 8 ou 9 anos. Os meus pais eram contra este tipo de brincadeir­a. Pensaram que eu não aceitava o meu ser feminino, porque, mesmo criança, cortava o cabelo, não gostava de cabelo comprido.

Como eram as vossas brincadeir­as? Também inventavam armas?

Sim! Inventávam­os armas, com folhas de bananeira. Fazíamos feitios de armas e brincávamo­s.

Tem polícias na família? De onde surgiu essa paixão?

Na altura, éramos refugiados de guerra e, onde estávamos, no capim, a PIR foi para lá. Vimos desembarca­rem do helicópter­o, descendo pelas cordas. Aquilo deixou-me maravilhad­a. Fiz várias perguntas à minha mãe. Ela disse-me que eram polícias da PIR. Logo que desembarca­ram, fomos para junto deles, a correr, todos contentes. Fiz-lhes uma série de perguntas.

Estavam a ser resgatados de onde e para onde seriam levados?

Nós fugimos da guerra, da cidade para a mata. Isso no Aldeamento 7, no Waku Kungo. Foi lá que a PIR desembarco­u. Eu estava lá, com os meus pais, irmãos, primos e tios. Fui falar com os polícias. Naquela altura, o meu pai era administra­doradjunto no município do Waku Kungo. Por isso, tive facilidade para falar com eles. Depois que retornamos à cidade, todas as manhãs, eles corriam, “matutinava­m”. Pedi ao comandante deles, o comandante Gasolina, para deixar-me correr com eles. Aceitou-me. Daí, fuime apaixonand­o mais ainda. No meio deles, pensava que já era polícia.

O que o seu pai achava disso?

O meu pai ficava maluco. No princípio, pensou que fosse brincadeir­a, que eu não fosse aguentar o esforço para ser polícia. Em 1999, quando a PIR saiu do Waku Kungo para Luanda, pedi ao comandante Gasolina para ser polícia.

Que idade tinha na altura?

Já tinha 16 anos. Disse-me que não tinha problema; que eu podia ser polícia. Logo que abriram os testes, enviou-me para o Kikuxi. Pertenci ao 5° Curso de Polícias de Intervençã­o Rápida, no Kikuxi.

Kikuxi é Luanda. Como foi a sua vinda à capital do país?

Vim a Luanda com a minha família, em Outubro de 1999. O meu pai trouxe-nos, eu e dois irmãos, para ficarmos com o meu tio Fausto Augusto, um irmão dele. Estávamos em guerra e Luanda oferecia melhores condições para estudarmos e maior segurança.

Em Luanda, o sonho de ser polícia persistiu?

Sim! Quando me apercebi que o grupo da PIR, que estava no Waku Kungo, regressou a Luanda, fui procurar pelo comandante Gasolina, no Delta, no Rocha Pinto. Ele fez contactos e, como estava prestes a iniciar o recrutamen­to no Kikuxi, levou-me para lá.

O seu tio não criou entraves?

O curso correu bem, graças a Deus! Mas o meu pai foi buscar-me na escola, por duas vezes. Ele não queria que eu me tornasse polícia. Falou com o Comissário Gerson Vieira Miguel "Papo Seco", actual II comandante Provincial de Luanda, que era o comandante no Kikuxi. O comandante Gerson, como pretexto para me tirar da escola, disse que eu não tinha físico, era “bebé” e não podia entrar na polícia. Enxotou-me duas vezes, a pedido do meu pai. Eu saí de lá a chorar.

Só havia rapazes no curso?

Éramos apenas duas meninas, eu e a Joana Francisco, a Jane. Ela também é polícia. Treinávamo­s todos juntos.

Com as barreiras criadas pelo seu pai, como foi possível continuar?

Com o apoio do comandante Gasolina, que, ao apercebers­e que o comandante Gerson saiu em missão de serviço, para o Congo, foi buscar-me a casa e disse: "aproveita, o Paposeco foi em missão de serviço". Fiquei muito feliz e regressei ao recrutamen­to. O meu pai já tinha regressado ao Waku Kungo e o meu tio não tinha como impedir, diante do apoio do comandante Gasolina. Fiz a formação, graças a Deus. Durou um ano.

A comandante desafia uma menina de 16 anos a ingressar na polícia, hoje?

Não sei como é feita a recruta hoje. Na altura em que fiz, só o fazia quem gostava, quem era, de facto, apaixonada pela farda. Foi muito duro. O Kikuxi, antigament­e, era um “fim do mundo”. Hoje, é um “mar de rosas”. Já tem água corrente. Nós, antigament­e, íamos buscar água no canal, a correr. A vida no Kikuxi era uma correria. Fora da caserna, era só correr, não se podia parar. E aquilo era cheio de areia. Quem parasse era castigado. Atiravam-te ao canal (ao rio). Saías do canal a rebolar, até à tua caserna. Depois da caserna, tinhas de cambalhota­r, enfim... Era preciso muita bravura.

“O curso correu bem, mas o meu pai foi buscar-me na escola, por duas vezes. Ele não queria que eu me tornasse polícia. Falou com o comissário Gerson Vieira Miguel “Papo Seco”, actual II comandante Provincial de Luanda, que era o comandante no Kikuxi. O comandante Gerson, como pretexto para me tirar da escola, disse que eu não tinha físico, era bebé e não podia entrar na polícia. Enxotoume duas vezes, a pedido do meu pai. Eu saí de lá a chorar”

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