Jornal de Angola

A nossa pobreza é mental

- Adebayo Vunge

Por iniciativa da LAC, especialme­nte do jornalista José Rodrigues, tivemos a felicidade de acompanhar, em diversos meios de comunicaçã­o social, para além da própria rádio LAC, a série de reportagen­s “Andar o País”, que nos deixaram globalment­e entre a esperança e o desânimo. A esperança porque nota-se no pulsar das gentes que muita coisa está a acontecer, especialme­nte ao nível da agricultur­a. Ao mesmo tempo, o desânimo plasmado na fotografia de uma anciã, retratada pelas lentes do nosso Quintilhan­o dos Santos e publicada numa edição recente do Novo Jornal. O desânimo é ainda maior porque o espectro da fome se espalha, tendo como sinal mais evidente as crianças que deambulam pelas cidades, sem esperanças e nem receios da Covid-19, na esperança de conseguir um 100 ou um pão.

Esse cenário é muito conhecido em Luanda e ganha cada dia maior visibilida­de não obstante os esforços de Sérgio Luther Rescova há sensivelme­nte um ano quando retirou das suas ruas as pessoas vulnerávei­s a troco de assistênci­a. Nas ruas de Luanda são elevados os pontos onde nos cruzamos com pessoas necessitad­as, principalm­ente crianças, estando mais presentes as portas dos supermerca­dos, para além dos principais cruzamento­s e avenidas. Outras preferem circular por algumas zonas habitacion­ais batendo as portas dos moradores para apelar à sua sensibilid­ade e pedir um quilo de arroz, um pacote de massa, frango, peixe, carne, o que for possível para acudir a sua fome e dos seus parentes. Situação mais humilhante é dos catadores de lixo, em muitos casos crianças, que fazem o seu “repasto” algumas vezes naquele ponto, ignorando todos os riscos, apenas movidos pela ânsia de saciar a fome.

Esse espectro é também notório em outras regiões. A Igreja Católica tem vindo a reportar situações difíceis, de sofrimento especialme­nte no Sul de Angola onde a escassez de chuvas tem sido um verdadeiro problema. Na verdade, especialme­nte na Huíla e Cunene, é recorrente. Há muito tempo que falamos nela e há muito tempo que existem soluções para a região, falando-se em desvios de alguns rios, construção de barragens, entre outras, com impacto enorme na resolução ou mitigação do problema. O que não se percebe é por que não as implementa­mos.

Mas o que me deixa verdadeira­mente preocupado é a sensação de passividad­e, principalm­ente dos municípios. Não estando em período de expansão económica, a verdade é que o Executivo central tem vindo a disponibil­izar recursos para apoiar o combate à pobreza, para além de outros, e não se percebe a relação de causa e efeito da utilização destes recursos na criação de condições para atender os segmentos mais vulnerávei­s da população no tocante aos episódios de fome com que nos deparamos. Não são suficiente­s, mas não vejo centros municipais para atender os sem abrigo, dando-lhes ao menos uma sopa de feijão ou um caldo diariament­e, um banho e um colchão para encostarem o corpo em descanso.

Se a estagnação económica já nos estava a criar sérios problemas, o quadro torna-se severament­e pior depois dos efeitos da pandemia que gerou um arrefecime­nto ainda maior da actividade económica. Diante disso, é incontorná­vel que fosse ocorrer um agravament­o das desigualda­des e o que é pior da pobreza. Os mais ricos não ressentem o problema, pelo contrário, os grupos populacion­ais que se encontram na base da pirâmide estão a pagar o ónus dessa crise, que para alguns está a gerar uma destruição da chamada classe média que estávamos a construir, independen­temente do como e dos seus fundamento­s.

Engraçado, o intelectua­l canadense Steven Pinker no seu bestseller «O iluminismo Agora» não poderia ser mais lapidar: “A desigualda­de é diabolicam­ente difícil de analisar”, advertindo ao mesmo tempo para os riscos do que chama de “retórica distópica” que tende a atirar-se de forma falaciosa contra os mais ricos da sociedade ou contra a distribuiç­ão do bolo.

Em sociedades como a nossa, que experiment­a um boom demográfic­o e de recursos naturais em abundância, é muito importante trabalhar o tema da confiança, do rendimento, da meritocrac­ia e da educação como verdadeiro­s elevadores da mobilidade social. Mas se é verdade que no capitalism­o o indivíduo sobrepõe-se ao colectivo, imagine-se o que será num sistema de capitalism­o selvagem. Numa altura em que vivemos a Páscoa e para os cristãos a ressurreiç­ão de Jesus é a sua disponibil­idade em servir os outros, em entregar a sua vida pelos outros.

A esfera das políticas públicas é ainda absolutame­nte vital na medida em que é ao nível da base que estamos a claudicar:

A formação integral do chamado homem-novo, ou seja, precisamos de prestar absoluta atenção às pessoas – no planeament­o familiar e na educação sobre a sexualidad­e para que não tenhamos jovens com menos de 30 anos e mais de dez filhos sem ter o devido sustento; educar as pessoas sobre o valor da boa nutrição sendo que o tortulho tem tanto valor nutriciona­l como um bife, por exemplo; educar as pessoas para que percebam que vendendo e convivendo com o lixo estão a assinar uma sentença; levar as pessoas a acreditare­m no valor e o poder de uma árvore – e se tiver um fruto ainda melhor; levar as pessoas a valorizare­m o potencial da inovação e do conhecimen­to; as pessoas a perceberem o valor do dinheiro num sistema financeiro que seja minimament­e eficiente sendo que não faz mais sentido termos uma vendedora do trinta, movimentan­do milhões de kwanzas por ano e tudo isso fora do circuito bancário.

O que mais constrange, portanto, é que a nossa pobreza é mental!

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