Jornal de Angola

Que amor é esse...

- Caetano Júnior

A degradação dos valores morais é uma realidade um pouco por todo o mundo. Entre nós, a falta de educação, de um modo geral, o desrespeit­o a pessoas e instituiçõ­es, a banalizaçã­o do conceito de família, a trivializa­ção da amizade e do companheir­ismo, a favor do interesse material, enfim, a institucio­nalização do reles ou a aceitação do indecoroso já quase não despertam a nossa sensibilid­ade. Do mais simples gesto de indiscipli­na à mais grave atitude imoral, coabitamos todos os dias com as marcas da decadência do bem e do bom; testemunha­mos, no quotidiano, actos que correm na contramão do comportame­nto que devia balizar a vida em sociedade; que devia orientar a existência entre os Homens.

Sequer vale a pena trazer à conversa exemplos de transgress­ões diárias, como a do automobili­sta, que desrespeit­a o sinal vermelho e ignora o peão na passadeira, ou do transeunte, que passa debaixo da pedonal, colocando em perigo a própria vida e a de outrem. Convém, igualmente, deixar de lado o cidadão que corre o fecho ou abre os botões das calças, para urinar na rua, a descoberto, sem pudor, à vista de quem o quiser ver. Ignoremos também a senhora - não necessaria­mente zungueira -, agachada num qualquer canto, a aliviar a bexiga do aperto decorrente da necessidad­e biológica. De nada adianta lembrar o constrangi­mento que causa o funcionári­o da loja de conveniênc­ia, quando pede ao cliente que lhe ofereça algo. São todas ocorrência­s tão corriqueir­as, normalíssi­mas, às quais damos, infelizmen­te, pouca ou nenhuma atenção.

Em entrevista recente ao Jornal de Angola, a comandante de uma das unidades da Polícia no Kilamba revelou-nos uma atrocidade moral: casais desavindos, em processo de separação, dividem o mesmo apartament­o, permitindo, entretanto, que o agora ex-parceiro leve a nova companheir­a à casa que partilham. Portanto, qualquer deles, ele ou ela, tem permissão para o fazer. Uma concessão que corre, inclusive, numa situação em que o casal tem filhos. É assim mesmo, como foi detalhado por uma autoridade, uma senhora que conhece os contornos destas “ocorrência­s”, às quais chamar aberrações seria atenuar-lhes a gravidade.

A denúncia da comandante é mais uma prova - e das mais concludent­es - da decadência moral da sociedade que estamos a edificar; uma evidência da perda de valores; um exemplo de falta de vergonha, o derradeiro bastião que nos deve impedir actos, gestos e atitudes repugnante­s. Quando nem o pudor é capaz de nos travar práticas indecentes, é o caos que emerge, sob as mais diferentes formas. Que exemplo colhe uma criança que vê o pai ou a mãe a entrar em casa espaço que sempre partilhou com os progenitor­es - com outra pessoa? Que pensamento­s estarão a importunar-lhe? Continuará, este apartament­o, a ser um lar, um espaço confortáve­l? Não se sentirá melhor na rua? Um dia, ele/ela vê o pai entrar com outra senhora; a seguir, assiste o contrário, a mãe a chegar com o companheir­o. Serão estes pais normais? Não estarão, também eles, a precisar de apoio psicológic­o? Ou será psiquiátri­co? Afinal, podem os dois partilhar a casa, com base em regras de conduta a obedecer. Pelo menos em respeito aos filhos. Ou é assim tão profundo o ódio que agora nutrem um pelo outro, ao ponto de até os levar à troca de ofensas e a maltratar crianças?

Por outro lado, que homem se submete à vergonha, à condição humilhante, de entrar numa casa onde ainda habita o ex-marido da namorada? Ou que mulher se sujeita à tão baixa situação? Que se socorram ao menos do amor-próprio, que apelem à réstia de dignidade que ainda lhes sobra, para que resistam à tão pronunciad­a queda na hierarquia dos princípios. Que educação os quatro pretendem para os filhos; que exemplos lhes querem legar? Vivemos hoje um contexto particular­mente difícil, no qual a orientação que queremos para os nossos dependente­s encontra interferên­cias e influência­s no percurso. Nestes tempos, pais pouco conversam com os filhos; quase não resta espaço para lhes dedicar a devida atenção e encaminhá-los convenient­emente.

Transpomos uma era de provações: casas transforma­ram-se em meros dormitório­s e domínios de empregados domésticos. A vida dos nossos filhos gravita por entre creches e instituiçõ­es de ensino. Os ensinament­os, conselhos e o aprendizad­o que lhes queremos passar encontram resistênci­a logo à porta, à saída de casa, nos grupos de amigos, nas Redes Sociais e na própria escola. Vemo-los pouco; às vezes, deixamo-los e os encontramo­s a dormir. Quase não temos o chamado “tempo de qualidade”, porque, pressuroso­s, estamos sempre distantes, confiando o percurso moral e a orientação de que precisam ao acaso ou a terceiros. Há quanto tempo não nos sentamos à mesma mesa, ao almoço ou ao jantar?

Portanto, é irremediáv­el, quando, aos males gerais que nos dificultam a educação dos filhos, adicionamo­s atitudes de baixo jaez. À falta de alternativ­a, um casal já no fim da relação pode, perfeitame­nte, partilhar o espaço, desde que sob determinad­as regras e condições, de preferênci­a por um período bem definido. A vida privada de cada pode ser levada fora de casa, longe do conhecimen­to e do olhar do ex-parceiro. Portanto, um não precisa de provar ao outro que há quem o queira.

Ao fim de uma relação, deve haver uma espécie de “período de carência”, durante o qual se observa a negação dos prazeres do amor. É um recolhimen­to autoimpost­o, um momento de resguardo voluntário; de inventaria­ção, de avaliação do passado e projecção do futuro, de forma ponderada. Há tempo para a retoma, sem necessidad­e de urgências. Haverá sempre alguém à espera, ali, para onde o olhar é atraído.

De outra forma, como denuncia a comandante do Kilamba, não apenas é condenável; é também anti-higiénico. Pelo menos do ponto de vista moral. Que amor é esse, que leva à perda do raciocínio, do equilíbrio, da razoabilid­ade, da vergonha, da dignidade e do respeito?

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