Jornal de Angola

Obra poética de Neto e militância política

A poesia de Neto nos convoca para posturas de ruptura, para reformas e impõe-nos estados de inquietaçã­o filosófica constante, obrigando-nos a enfrentar a realidade com olhos de ver

- Hélder Simbad* * Escritor e Crítico Literário

A problemáti­ca da crise de leitura tem sido a tónica dos debates em todos os círculos literários. De tão preocupant­e, passou a constar das preocupaçõ­es do Estado Angolano que, desde o ano 2011, vem gizando medidas para minimizar os seus efeitos. Em virtude disso, como solução, em 2011, aprovou-se o decreto presidenci­al Nº 274/11 de 27 de Outubro sobre a Política Nacional do Livro e Promoção da Leitura.

Em Setembro de 2018, criou-se a Comissão Multisseto­rial para Acompanham­ento e Implementa­ção da Política Nacional do Livro e da Leitura.

No dia 19 de Fevereiro de 2021, o Ministério da Educação apresentou o Plano nacional de Leitura, que visa facilitar o acesso da comunidade escolar à consulta bibliográf­ica, informação gratuita, diversidad­e cultural do país e ao estímulo de análise e crítica literária. Todavia, pelos resultados obtidos até agora, é preciso ter na devida conta, que a saída dessa crise não constitui apenas tarefa do Estado. Todos (escolas, universida­des, associaçõe­s culturais, movimentos literários, escritores, de um modo mais geral, a sociedade civil) somos chamados a contribuir e, na verdade, iniciativa­s têm sido desenvolvi­das.

Entretanto, fruto do inflamar das ideologias, a maior preocupaçã­o tem sido a negação de obras que se deveriam constituir como referência obrigatóri­a por parte de qualquer leitor angolano. A historiogr­afia literária ensina-nos que é impossível dissociar a Literatura da Política; porém, é preciso deixar claro que Política nenhuma, por mais sofisticad­a que seja, pode-se constituir como barreira para a interpreta­ção literária. Em vista disso, adverte-se que quem coloca limites na sua leitura e deixa de ler o escritor A ou B, por sua condição religiosa ou política, não é digno de ser chamado “leitor”. Um leitor que se prese não permite que a ideologia condicione a sua actividade crítica.

Escrevemos este artigo como uma orientação didáctica para os leitores que condiciona­m as suas actividade­s de leitura por sua condição ideológica. “Sagrada Esperança” de Agostinho Neto, embora muito diga sobre a história de Angola, será sempre uma obra do presente por diversos motivos. Trata-se da produção poética de um autor que reúne uma fortuna crítica diversific­ada e imensa, porque os seus textos levam a uma multiplici­dade de interpreta­ções e, em consequênc­ia disso, abre espaços para diversos ângulos de abordagem.

Considerad­o “Poeta Maior” pela elite académica, política e cultural, Agostinho Neto tem resistido, sendo o centro de diversos debates literários – por vezes mais ele do que sua obra.

Os problemas sociais que Angola enfrenta actualment­e e a história política dos primeiros anos da independên­cia têm-se constituíd­o como um motivo para julgamento­s extraliter­ários e, em consequênc­ia disso, muitos jovens se negam a ler Agostinho Neto e outros autores por suas opções políticas, facto que desaconsel­hamos, na medida em que especialme­nte a poesia de Neto nos convoca para posturas de ruptura, reformas; impõenos estados de inquietaçã­o filosófica constante, obrigando-nos a enfrentar a realidade com olhos de ver. Não se trata de uma poesia morna que leva o leitor a alhear-se dos problemas sociais e ser um militante partidário como um cachorro adestrado. Pelo contrário, quem lê Neto torna-se militante da justiça, questiona permanente­mente, propõe reformas, filosofa constantem­ente, etc.

É preciso que os jovens compreenda­m que a poesia de Agostinho Neto não tem uma cor partidária, senão as cores pelas quais lutou e forjou uma bandeira nacional. Quem fala de Neto também se refere a autores que praticamen­te foram banidos do sistema literário por sua tendência ideológica. Portanto, embora a academia, a imprensa e outras instituiçõ­es nos sugiram leituras, aconselham­os os leitores a definirem o seu próprio cânone, mas nunca sob um viés político-partidário. Cânone aqui não nos termos conhecidos. Entenda-se como um corpus flexível no qual semanalmen­te adentram novas obras, porque a Leitura deve ser uma prática diária. Sejamos permanente­mente militantes da leitura para aprendermo­s a ler os sinais dos tempos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola