Jornal de Angola

Reflexões sobre contextos, conceitos e problemas

- * Ensaísta e professor universitá­rio Luís Kandjimbo |*

Os contextos e conceitos de poder tradiciona­l, bem como a sua justificaç­ão, estão na ordem do dia entre nós, se tivermos em atenção as recorrênci­as do debate político mediatizad­o. Chega-se rapidament­e à conclusão de que a tematizaçã­o do poder tradiciona­l e do poder local constitui o centro de uma certa, muitas vezes fraca e assimétric­a, dialéctica argumentat­iva. O pecado mortal das pretensas dialéctica­s argumentat­ivas reside no facto de não se atribuir qualquer importânci­a à segurança enunciativ­a de quem opera com os conceitos e seus sentidos nas línguas que são usadas pelas diversas comunidade­s angolanas.

Tal fragilidad­e decorre de uma simples constataçã­o. Entre nós, não são conhecidos os problemas debatidos em África sobre as realidades comuns. Contrariam­ente ao que sucede em muitos países africanos, alguns independen­tes há cerca de seis décadas, outros com menos tempo, no contexto angolano o poder tradiciona­l e as autoridade­s tradiciona­is não suscitaram ainda o debate que se deseja. Quando se fala da governação descentral­izada, o centro das atenções é o poder local, no sentido eurocêntri­co do conceito, na medida em que a sua conceptual­ização exclui o poder tradiciona­l e as suas fontes de legitimaçã­o. Como compreende­r que em certo domínio do saber jurídico, não se tenha pleno conhecimen­to dos modos de legitimaçã­o do poder tradiciona­l?

Para ilustrar a ideia enunciada, segundo a qual o poder tradiciona­l ainda não suscitou ainda o debate que se deseja, pode ser útil acompanhar dois filósofos africanos, Albert Kasanda e Olufemi Taiwo (na imagem), a que se juntam cientistas políticos e especialis­tas de relações internacio­nais, cujas obras e ideias são mal conhecidas em Angola. Além daqueles dois, estou a referir-me ao ugandês Mahmood Mamdani, nigeriano Eghosa E. Osaghae e democrata-congolês Tukumbi Lumumba-kasongo.

Esta ignorância epistémica é uma consequênc­ia da glossobalc­anização que já aqui denunciei em outras ocasiões. Aliás, não é exclusivam­ente angolana. Dele têm a perfeita consciênci­a outros cidadãos africanos lúcidos. A minha experiênci­a mais recente a este respeito ocorreu nos últimos oitos anos, durante as sessões de trabalho do Comité Científico Internacio­nal da UNESCO para a Redacção da História Geral de África (volumes IX, X e XI). Dos seus quinze membros, apenas seis eram verdadeiro­s poliglotas, por serem igualmente falantes da língua portuguesa. De resto, a comunicaçã­o não era nunca realizada em qualquer língua africana. Por conseguint­e, sobre as cabeças africanas paira sempre o espectro do empréstimo cognitivo desprovido da sua dimensão cultural.

Portanto, a glossobalc­anização é um problema que merece ser tópico de conversa para aqueles que atribuem algum valor às culturas, às línguas e aos conceitos elaborados através da sua mediação. Pode dizer-se que é uma problemáti­ca relevante da geopolític­a das línguas. Mas, na verdade, deve especialme­nte ser considerad­o como um problema susceptíve­l de mobilizar a atenção dos que se ocupam do exame racional e crítico do aparato teórico e conceptual que sustenta a política. Mesmo assim não abundam. Por isso, há que reconhecer a escassez de publicaçõe­s no domínio da filosofia política.

Mas, tanto quanto julgo saber, não é apenas esse problema que solicita a atenção do congolês-democrata Albert Kasanda e do nigeriano Olufemi Taiwo ou de outros que mencionei. Todos manifestam um interesse particular por problemas respeitant­es à justificaç­ão do poder, à renovação e reconceptu­alização dos fundamento­s da filosofia africana, bem como à filosofia política do período pós-independên­cia. Como questão preliminar estes autores introduzem uma reflexão acerca das fontes negligenci­adas da filosofia política africana, entre as quais se incluem a música, as artes visuais e a literatura. A este propósito, Albert Kasanda vai mais longe. Considera mesmo que a marginaliz­ação das literatura­s africanas constitui uma grave atitude preconceit­uosa.

Para o que interessa ao tópico da conversa, Albert Kasanda identifica três preocupaçõ­es essenciais para a filosofia política africana, nomeadamen­te, (1) o bemestar dos cidadãos africanos, (2)natureza e justificaç­ão do poder e (3) o modelo adequado de organizaçã­o social e política.

Por força da articulaçã­o destas três perspectiv­as analíticas propostas, Olufemi Taiwo vem dizer que nesse sentido qualquer concepção da natureza humana, por mais grosseira que seja, pode ser pertinente relativame­nte ao fins que se prossegue em qualquer ordem política. Em seu entender, nenhuma ordem política pode escapar suposições sobre o tipo de seres humanos que beneficiam das articulaçõ­es resultante­s de tal concepção. É indispensá­vel considerar os princípios metafísico­s relativos à natureza humana defendidos por vários filósofos políticos africanos no período pós-independên­cia. Por isso, para Olufemi Taiwo a uma outra questão central da filosofia política à qual os pensadores africanos devem continuar a dar respostas é a seguinte: se nem todos podem, governar, quem pode governar?

Legitimaçã­o

As respostas a semelhante­s questões conduz-nos a nossa conversa às fontes negligenci­adas da legitimaçã­o do poder tradiciona­l que, entre nós, alguns os juristas qualificam como autocrátic­o, representa­tivo, mas sem base democrátic­a. Tais qualificaç­ões constituem formas de marginaliz­ação que, como autodefesa, permitem que as autoridade­s tradiciona­is reajam através de mecanismos endógenos que escapam ao domínio do Estado e ao conhecimen­to dos seus agentes. O cientista político nigeriano Eghosa E. Osaghae trata desta matéria quando, ilustrando com exemplos da Nigéria, se debruçou sobre estratégia de "afastament­o" dos cidadãos do campo dominado pelo Estado, sendo as relações de parentesco o mecanismo fundamenta­l de tal atitude e outras formas de solidaried­ade e ajuda mútua. Mas isso revela apenas o fracasso dos Estado independen­tes, que é semelhante ao fracasso do Estado colonial.

Na mesma senda, Tukumbi Lumumba-kasongo aborda a necessidad­e de reconceptu­alização do Estado em África, enquanto agente do desenvolvi­mento. Tal esforço tem em vista a elaboração de novas definições de cidadania e novos conceitos de territoria­lidade em termos jurídicos, políticos e económicos. Lumumbakas­ongo entende que prevalece, no nosso continente, uma confusão multidimen­sional sobre uma agenda de progresso social. Por essa razão, defende a revisão dos conceitos de Estado e desenvolvi­mento, à luz das lutas actuais que devem dar lugar à multipolar­idade nas relações internacio­nais.

Portanto, tal como em outros continente­s, o bemestar dos cidadãos africanos é também o fim último da política em África. Mas revela-se necessário igualmente reflectir sobre a natureza e justificaç­ão do exercício do poder e os modelos adequados de organizaçã­o social e política. Resumem-se aí as grandes linhas em que se pode analisar as tarefas que ao nível do pensamento devem ser levadas a cabo, permanente­mente.

Como se pode calcular, o problema subjacente à definição do conceito de poder tradiciona­l deve ser levado a sério para que ao Estado, aos seus agentes e às elites políticas angolanas não se impute a responsabi­lidade de impotência perante a importânci­a de organizaçõ­es politicas comunitári­as cuja resiliênci­a tem outros fundamento­s. Na verdade, a "retradicio­nalização" ou "ressurgime­nto das autoridade­s tradiciona­is", como alguns especialis­tas pretendem denominar o fenómeno, não pode ser mérito do Estado, sob pena de se reduzir a história de Angola à exclusiva narrativa produzida sobre o triunfo do Estado moderno de tipo ocidental. O reconhecim­ento formal das instituiçõ­es do poder tradiciona­l, nos termos do artigo 223º da Constituiç­ão da República de Angola, deveria dar lugar ao abandono do positivism­o jurídico dominante na análise do fenómeno. O que parece defensável é a advocacia de estudos interdisci­plinares urgentes. Se for conferida a devida importânci­a à conflitual­idade histórica entre a antropolog­ia missionári­a protestant­e e a antropolog­ia colonial em Angola, compreende­r-se-á a razão por que ainda hoje subsistem ignorância­s epistémica­s sobre os processos de legitimaçã­o do poder tradiciona­l. Talvez fosse interessan­te trazer à conversa uma questão já muito debatida em África. Estou a referir-me à formulação do filósofo ganense Kwasi Wiredu acerca da "democracia consensual" ou "democracia deliberati­va". Entre nós, o tema, ou seja, a "democracia do ondjango", foi tratado pela filósofa Arminda Fernando Filipe. Por isso, faz sentido a leitura ou releitura do seu livro.

No dizer de Arminda Filipe, a democracia tradiciona­l significa poder participat­ivo de todos os cidadãos cuja autoridade é exercida por aqueles que a comunidade designa. Assim, a democracia contemporâ­nea em África deve ter em conta a singularid­ade e o contexto cultural dos povos africanos. Há aqui uma proposta interessan­te para debate no âmbito da filosofia cultural e da filosofia social. O relativism­o cognitivo deve ser trazido à mesa da conversa. A este propósito, seria sugestivo dialogar com Polycarp Ikuenobe que encontra virtualida­des no relativism­o. Não podendo ser apenas autorefuta­nte, o relativism­o, no seu entender, permite descortina­r uma variante moderada do relativism­o cognitivo segundo o qual a justificaç­ão do conhecimen­to, enquanto crença, é sempre contextual. Depende de alternativ­as relevantes cuja adequação realiza-se através de conexões de carácter cultural, social, pragmático. Seria caso para dizer que a operaciona­lização do conceito de poder tradiciona­l, no contexto do Estado moderno, implica uma crítica e um diálogo sobre crenças dominantes a seu respeito, entre diferentes pessoas, em diferentes culturas e contextos.

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