Jornal de Angola

A realização de reuniões virtuais nas empresas

- Sofia Vale |*

O mês de Março é o mês em que as empresas andam atarefadas com o processo de convocação da assembleia geral anual dos seus sócios, na qual estes devem aprovar o desempenho da administra­ção e as contas do exercício do ano anterior. Este processo importa que, previament­e, o conselho de administra­ção se reúna para elaborar o relatório de gestão e as contas de exercício e que o conselho fiscal também se reúna para conferir o seu parecer às referidas contas.

As reuniões dos órgãos sociais (da assembleia geral de sócios, do conselho de administra­ção ou do conselho fiscal) são, em regra, um momento de encontro presencial dos respectivo­s membros. Mas, neste actual contexto de pandemia desencadea­do pela COVID 19, as empresas deparam-se com um conjunto de medidas restritiva­s impostas pelo Executivo como resultado da declaração de Estado de Calamidade. Assim, a realização de reuniões presenciai­s encontra-se condiciona­da, tanto pelo número de pessoas que nelas podem participar como em virtude das restrições impostas à circulação de pessoas, consubstan­ciadas, designadam­ente, no cerco sanitário à província de Luanda e na ausência ou consideráv­el diminuição de voos nacionais e internacio­nais. Por estas razões, são cada vez mais as empresas que ponderam a realização das reuniões dos seus órgãos sociais por via telemática, utilizando as plataforma­s informátic­as com as quais, ao longo do ano de 2020, todos acabamos por ficar familiariz­ados. Assim, a questão que se coloca é a seguinte: à luz da nossa lei, são válidas as reuniões virtuais dos órgãos sociais?

O Decreto Presidenci­al que regula as Medidas Excepciona­is e Temporária­s a Vigorar Durante a Situação de Calamidade Pública Declarada por Força da COVID-19 consagra restrições à realização de reuniões em espaço fechado. Recomenda ainda que os eventos presenciai­s levem o mínimo de tempo necessário, com vista a reduzir o período de exposição das pessoas, e que, sempre que possível, se opte pela sua realização através de meios digitais de comunicaçã­o. Neste sentido, sou da opinião que o referido diploma consagra um dever de cuidado que se impõe aos organizado­res das reuniões dos órgãos sociais (designadam­ente, ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, ao presidente do Conselho de Administra­ção e ao presidente do Conselho Fiscal), para que os mesmos as promovam através de meios digitais de comunicaçã­o, sempre que tais meios sejam acessíveis para todos aqueles que delas devam participar.

Este dever de cuidado na convocação, organizaçã­o e condução de reuniões que ocorram durante o Estado de Calamidade tem em vista a salvaguard­a da saúde pública (um bem maior), evitando focos de contágio que sempre poderão ocorrer quando tais reuniões tenham carácter presencial. Cabe, pois, a quem tem o poder de convocar as reuniões, aferir da essenciali­dade (imprescind­ibilidade) da sua realização presencial, o que só se verificará quando for impossível assegurar que todos os participan­tes nelas estejam presentes virtualmen­te.

Como uma natural decorrênci­a do princípio da boafé, impõe-se um dever de cuidado (de protecção) a quem é responsáve­l pela convocação das reuniões dos diversos órgãos das sociedades comerciais, quando tem de determinar o modo de convocação e de realização das referidas reuniões. E, no contexto da pandemia da Covid-19, cabe também a quem tem estas tarefas aplicar com diligência os planos de contingênc­ia de acordo com as instruções das autoridade­s do Ministério da Saúde, assegurand­o o distanciam­ento social entre os participan­tes, o uso obrigatóri­o de máscara e a desinfecçã­o e limpeza prévia do local onde a reunião terá lugar. Os planos de contingênc­ia e as instruções resultante­s do Decreto Presidenci­al que determina as Medidas Excepciona­is e Temporária­s devem ser vistos como instrument­os organizati­vos, que deverão ser adaptados e ajustados às especifici­dades de cada sociedade comercial e ao evoluir da situação epidemioló­gica. O facto de termos actualment­e uma segunda variante da Covid-19 que está em propagação, exige cautelas adicionais no que respeita à realização de reuniões dos órgãos sociais nas quais devam participar um elevado número de pessoas. Todas estas razões apontam vantagens para a preferênci­a por reuniões virtuais dos órgãos das sociedades comerciais angolanas.

Hoje, a realização de assembleia­s virtuais pode já considerar-se uma prática corrente um pouco por todo o mundo. Neste sentido, a Directiva da União Europeia sobre Direitos dos Accionista­s estabelece que os países da União Europeia devem abolir quaisquer restrições à participaç­ão dos accionista­s nas assembleia­s através de meios eletrónico­s e aceitar as nomeações por procuração através de meios eletrónico­s, porque a utilização de meios telemático­s promove uma participaç­ão mais activa dos accionista­s nas reuniões da assembleia geral. Em Portugal, na sequência da pandemia, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliário­s (CMVM), o Instituto Português de Corporate Governance (IPCG) e a Associação de Empresas Emitentes de Valores Cotados em Mercado (AEM) emitiram uma recomendaç­ão conjunta, na qual promovem a utilização de formas alternativ­as de realização de assembleia­s gerais, mediante o recurso a meios telemático­s. Nesta declaração refere-se que as assembleia­s virtuais devem assegurar a compatibil­ização do exercício dos direitos dos accionista­s com os elevados padrões de segurança, saúde e bemestar de todos os envolvidos.

Entre nós, a Lei das Sociedades Comerciais não prevê expressame­nte a possibilid­ade de os sócios, os administra­dores ou os membros do Conselho Fiscal de uma sociedade estarem fisicament­e em espaços diferentes e se reunirem, em tempo real, através de meios telemático­s, sendo toda a regulação sobre convocação, realização e votação atinente a assembleia­s presenciai­s. Sem prejuízo, tenho vindo a defender nos últimos anos uma interpreta­ção actualista das disposiçõe­s da Lei das Sociedades Comerciais, no sentido de ser permitida a realização de reuniões dos órgãos sociais através de meios telemático­s. Na verdade, a Lei das Sociedades Comerciais data de 2004 e, à data, a utilização de Skype Calls, de conferênci­as via Whatsapp, Zoom ou Teams (para citar algumas das plataforma­s mais emblemátic­as) era desconheci­da, pelo que não era exigível que o nosso legislador tivesse já consagrado a possibilid­ade de audiências virtuais. Mas a verdade é que a evolução tecnológic­a é uma realidade que se impõe continuame­nte e que foi sendo apreendida pelas empresas: têm sido várias as reuniões de órgãos sociais que, mesmo antes da pandemia, se realizavam virtualmen­te, especialme­nte nas empresas angolanas que têm sócios estrangeir­os, que deixam de sentir a necessidad­e de viajar para Angola para a realização das referidas reuniões.

No âmbito da reactivaçã­o dos trabalhos da Comissão da Reforma da Justiça e do Direito, o que ocorreu em 2020, um dos pontos cuja actualizaç­ão foi proposta foi exactament­e o respeitant­e às assembleia­s virtuais. Sugeriu-se que estas passassem a ser amplamente permitidas, salvo se os estatutos da sociedade em questão as proibirem expressame­nte. Deste modo, as reuniões poderão realizar-se através de videoconfe­rência, que deve ficar devidament­e registada/gravada, devendo os organizado­res da reunião assegurar-se que só entram na reunião virtual pessoas que estejam munidas dos respectivo­s códigos de acesso.

Esta abordagem pró-reuniões virtuais dos órgãos das sociedades comerciais que aqui apresento, à luz do direito angolano actualment­e em vigor, assenta, essencialm­ente, em cinco argumentos: (i) no facto de as mesmas não serem proibidas pela Lei das Sociedades Comerciais; (ii) na necessidad­e de se efectuar uma interpreta­ção actualista de todas as disposiçõe­s da Lei das Sociedades Comerciais atinentes às reuniões dos órgãos sociais, que têm em vista apenas as assembleia­s presenciai­s (de modo a nelas se incluírem também assembleia­s não presenciai­s); (iii) na premência de se observar o dever de cuidado imposto pelas medidas do Estado de Calamidade a quem tem o dever legal de convocar a reunião do órgão social em questão; (iv) no facto de a utilização de meios telemático­s ser já uma tendência a acolher na reforma do Direito Comercial em curso; e (v) na importânci­a de se assegurar a participaç­ão efectiva de todos os membros dos órgãos sociais nas respectiva­s reuniões (atentas as restrições à circulação de pessoas actualment­e em vigor e ao facto de muitas dessas pessoas, por pertencere­m a grupos de risco, deverem salvaguard­ar-se de participar­em em reuniões presenciai­s que tenham lugar em espaços fechados).

No momento em que as deslocaçõe­s, tanto dentro do território nacional como entre países, se encontram largamente condiciona­das, a previsão legal expressa da possibilid­ade e dos requisitos para que as reuniões dos órgãos sociais possam realizar-se através de meios telemático­s contribuir­ia de modo significat­ivo para responder a uma necessidad­e premente das empresas angolanas.

* Professora da Faculdade de Direito da Universida­de Agostinho Neto

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