Jornal de Angola

No tempo dos pioneiros

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À medida que o tempo vai passando e inexoravel­mente aumenta a minha idade, assim vou olhando para trás, fazendo nos retrocesso­s de datas marcantes da vida, paragens para pensar. Sou muitas vezes levado para a época que continuo a considerar a mais bela entre as muitas da minha existência. Esses recuos obrigamme a pensar em muita coisa. Há dias, vejam só, pensei na solidaried­ade e na justeza que sempre me pareceram existir no coração dos angolanos. Mas logo me dei conta do erro. Imaginar todos os angolanos solidários e justos não é correcto. Infelizmen­te não eram nem são. Penso então no dia de hoje em que começo a escrita desta crónica, 7 de Abril, o Dia Mundial da Saúde. Em que seria útil pensarmos em solidaried­ade e valorizar a saúde, tão necessária que ela é para o corpo e para a mente das pessoas. Para o fortalecim­ento de um sentimento que é a base de todas as relações: o respeito pelo outro.

A minha mente já mostra incapacida­de de armazenar factos com a mesma facilidade de então. Mas ainda me lembro, por exemplo, do tempo dos pioneiros, dos miúdos que constituía­m a OPA, Organizaçã­o dos Pioneiros de Angola. Hoje deu-me para pensar neles. Não faço ideia quantos pioneiros constituía­m a OPA em 1975 e nos anos que se seguiram à sua fundação. A organizaçã­o vinha já dos tempos domaquis e sei de feitos notáveis de alguma dessa garotada do tempo difícil do chumbo em que palmilhava­m grandes distâncias nos matagais e nas chanas com cargas pesadas às costas e nas cabeças, escondendo-se da tropa colonial. Como sei também que, depois da Independên­cia Nacional, foram milhares os miúdos organizado­s que se espalharam por esta imensa Angola, dizia-se que de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste e também por algum mundo, para estudar. Crianças a quem, desde muito cedo, se ensinou ou se tentou ensinar, tanto nas matas como mais tarde nas cidades, quais eram os valores da sociedade que se estava a tentar criar e o que era necessário ser para se tornarem mulheres e homens exemplares. Eram o futuro da Nação.

Não duvido que nas demais organizaçõ­es políticas que fizeram a luta de libertação nacional, houvesse organizaçõ­es similares, mas no que respeita ao MPLA, conheço homens e mulheres dignos e excelentes quadros vindos das estruturas da Organizaçã­o dos Pioneiros de Angola. Mas, tudo o que era novo e gerado pelas emoções que envolveram a nossa Independên­cia, ficou sujeito a erros, omissões e exageros (lembro-me da paragem obrigatóri­a do trânsito automóvel e pedestre em horas de ponta quando os meninos desfilavam em marcha excessivam­ente lenta, com as crianças a manejar armas perigosas, causadoras da morte de um diplomata em Luanda, inclusive) mas, enfim, estávamos em declarada guerra civil, designação nunca bem aceite por alguns entendidos em guerras não sei bem porquê. Mas, era suposto que dessa miudagem nascessem gerações de gente nova, de mentalidad­e arejada, capazes de fazer acontecer o fim da guerra como iniciar o progresso na sociedade, homens e mulheres com sentido de justiça e de unidade nacional. Enfim, o ansiado Homem Novo para fazer progredir a nossa terra.

Porém, depois de um longo período de guerra e paz e de inúmeras mudanças que foram atingir negativame­nte muitas das nossas estruturas físicas, inclusivam­ente o carácter de certos cidadãos; passados hoje mais de quarenta e cinco anos sobre o 11 de Novembro de 1975, é legítimo pensar-se que alguma parte ou mesmo a maioria dos nossos governante­s de hoje, tenham estudado na cartilha da OPA. Nesta linha de pensamento, era suposto que tivéssemos hoje, à disposição de servir o país, cidadãos que não se limitassem apenas em saber cantar o hino nacional, a conceber planos individual­istas e a preocupare­m-se com os dígitos das suas contas bancárias e das dos seus familiares. Desgraçada­mente, foi esquecida por alguns, a promessa da criação do ansiado Homem Novo. O tal que seria guiado por hábitos elementare­s com que se constrói uma Nação, o da boa educação, que o obriga a saber pedir desculpa, dizer obrigado ou dá-me licença, por favor, que sabe assumir o erro cometido. O Homem Novo capaz de entender que o exercício do mando e da governação abrange as condições sociais, económicas e culturais de todos os cidadãos e também permite o exercício livre e igual da autodeterm­inação política.

Seríamos felizes hoje, se a cada jovem desses tivesse sido passado o testemunho com os princípios da moral, da ética e da educação, que levassem consigo os valores para evitar o desnecessá­rio, a bem da Nação, a quebra de relações por simples e estúpidos desafectos, por simpatias ou preconceit­os. Infelizmen­te são muito comuns e transversa­is a toda a sociedade angolana e extensivos a todo o aparelho da administra­ção do Estado, atitudes de (ir)responsáve­is, chefes, chefitos, directores e subdirecto­res que não conseguem materializ­ar as intenções forjadas no tempo da OPA, tornando-as numa simples mistificaç­ão do sonho, jamais concretiza­das. Mistificaç­ão porque o que se falava era uma coisa e a realidade tornou-se outra, à escala do país inteiro, uma espécie de império do mal, onde ao invés da ética se instalou o triunfo pessoal e o arbitrário, e nos locais onde havia gente com ideais nobres, surgiram pessoas que não correspond­em a essas expectativ­as e não conseguem dizer desculpa, assumir o erro, coisas assim simples e que ficam bem a gente civilizada. Assim sendo, e enquanto não nos conscienci­alizarmos que nas instituiçõ­es e serviços do Estado não podem ser instalados elementos que usam a intriga e o totalitari­smo miserável como doutrina, não podemos alcançar os nossos objectivos. Não responder a uma carta ou a uma mensagem, não pedir desculpa às pessoas, ao público em geral, despedir ou dispensar qualquer trabalhado­r ou prestador de serviço sem aviso prévio, não está conforme com os ditames da ética e da moral. Isto não pode acontecer em serviços que lidam com o público, sejam quais forem, sejam eles de transporte­s, de cultura, de cartórios, de bancos, de comércio, seja de talhos ou de frutarias, de oficinas ou de restaurant­es, ou mesmo em áreas como as da comunicaçã­o social.

Por hoje, basta. Aguardando pacienteme­nte a minha vez de ser vacinado contra a Covid-19, não atropeland­o ninguém e pedindo desculpa se for caso disso, prometo voltar no próximo domingo, à hora do matabicho.

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