Problematizar identidades
João Miranda é um autor bastante interessante na estratégia de problematização do enredo nos seus textos literários. Desenterra polêmicas com um sorriso no canto dos lábios, ou piscando-nos inocentemente o olho, transmitindo a ideia de não ser propositado
Foi assim na obra “Nambuangongo” (1998), aduzindo-nos um assunto num contexto aparentemente inapropriado para a abordagem dos horrores do 27 de Maio de 1977 em Angola; foi assim com “Petelo-a-kuma: o menino inteligente” (2002), uma estória que questiona a possibilidade da existência de um portal entre a vida e a morte, e foi assim com “Hebo” (2012), também desmistificando a pretensa simbologia de tradicionais nomes de famílias angolanas, ao mesmo tempo que traçava linhas sobre o reencontro de famílias e a sua reestruturação com amores e desamores pelo meio.
Na presente obra, um romance psicológico intitulado “Nova evangelização precisa-se?”, que nos chega através da Guerra & Paz, Editores, não tenhamos ilusões: o autor continua a ser um fiel problematizador.
A obra, aparentemente desestimulante no início, vai ganhando forma menos densa ao longo das suas 166 páginas, em cenários realísticos privilegiados por descrições e narrações que nem por isso apadrinham os diálogos entre personagens.
É mais um narrador introspectivo que, com a sua voz, nos conduz a uma Luanda alternativamente ficcionada, um mundo perene de conflitos de solução atemporal, pondo em evidência a nossa heterogénea condição de cidadãos crioulos com múltiplas identidades, nomeadamente nacional, cultural, social, filosófica, antropológica, linguística, etc.
Quem gosta de se sentir estimulado a olhar as sociedades com olhos críticos, tem a oportunidade de pensar em difusos assuntos polêmicos que essa nova evangelização de João Miranda nos propõe.
Começando pelo tema, a palavra evangelização pode estar a desviar-nos, conduzindo o leitor para uma outra direcção, não errada, mas menos problemática. Evangelizar pressupõe pregar o evangelho, anunciar a boa nova. Ou seja, a palavra casa com a religião.
Mas, na minha leitura, há, por trás da palavra evangelização, um oculto sentido mais amplo, tendendo à revolução.
Para se ser bom polígamo
O escritor João Miranda não o cidadão ou o político João Miranda – provoca questionamentos sobre a nossa maneira de pensar sobre as nacionalidades, o cristinanismo, a poligamia, a família, os confiscos pósindependêcia angolana, o casamento formal e a união de facto, o feminismo como fenómeno social modernista, o adultério, apenas para sublinhar esses assuntos.
Não percamos de vista a perspectiva de abordagem no livro sobre a força do boato e o seu efeito devastador, assunto que segura com uma inigualável força o volante do enredo logo à partida.
Todas essas problemáticas realidades dialogam com o desejo de revolução. Espero que não se confunda revolução com inovação ou com ineditismo. Concentremonos na analogia entre evangelização e revolução.
É revolucionário trazer à baila em sociedades cristãscatólicas a pergunta sobre quem realmente terá morto Jesus Cristo: judeus ou romanos? Judeus e ponto final, diriam os católicos, que não admitem que se acuse os romanos; romanos de Roma, onde hoje mora o poder da secular igreja de Pedro.
É revolucionário questionar abertamente a poligamia, expor os seus promotores e defensores, obrigá-los a apresentar os seus argumentos de razão, assim como os seus efeitos perversos sobre as famílias e as mulheres, propor a institucionalização ou sua legislação para sair do faz de conta?
É revolucionário propor que se anule por legislação factores que fragilizam a família e, consequentemente, os males que as famílias fragilizadas provocam às sociedades?
É revolucionário voltar a questionar abertamente o cenário dos confiscos realizados no pós-independência, em que “tutores” do patronato colonial terão permanecido em Angola para proteger os seus interesses, a desfavor da nacionalização do património “conquistado” no fervor revolucionário?
É revolucionário esbater sobre a grandeza do feminismo nas sociedades modernas, a solidariedade feminina que atinge a força de tsumani social quando as mulheres unidas assim o querem; contra o verbo cheio de músculos e preconceitos masculinos dos homens para derrubar a razão das descendentes da “Eva”?
É revolucionário o tom imprimido na desprotecção do Estado e da sociedade sobre a união de facto, as exigências sobre a sua consumação, contra a bênção que o casamento formal e oficial merece, que é capaz de açambarcar privilégios sociais adquiridos por uma mulher que não oficializa em “união de facto” uma relação de mais de 10 anos, a desfavor de uma outra do seu parceiro que consolida em meses um matrimónio na Conservatória de Registo Civil?
É revolucionário a pretensa e pública solidariedade masculina diante do adultério, e o apadrinhamento dos machos a favor da justiça por mãos próprias perante adultério? O autor problematiza o olhar da sociedade que castiga a adúltera e finge não ver o adúltero. Talvez por a mulher casada ser propriedade e que o homem deve dispor dela como lhe convém.
Discorrendo sobre o livro, o leitor poderá também dialogar com as personagens que, em posse de discursos feministas declaram subversão social para que o Estado assuma uma postura mais digna da época modernista em que vivemos.
Como jurista, o cidadão que preenche o narrador com perícia em direito, analisa e comenta a sociedade regida por leis que em aspectos problematizados provocam desequilíbrios sociais. Por exemplo, através de um interessante e incisivo diálogo, o leitor poderá conhecer as cinco razoáveis capacidades jurídicas para se liderar múltiplas famílias. Ou seja, os requisitos de um polígamo para manter as várias famílias.
É uma obra polifónica inspiradora, com várias estórias que se cruzam e descruzam, personagens de corpo e alma com carácter de vida breve, perfiladas para a conjugação de um enredo longo que se passa numa Luanda crioula.
Há neste romance um edifício de acções edificadas sobre os pilares de uma novela. Quem mata quem? Porquê? Quem casa com quem? Quem trai quem?
É um romance perfeito para quem está preparado para ouvir sobre novas revoluções. Não para leitores quadrados. Não seja um leitor quadrado.
*Texto de apresentação da obra “Nova evangelização precisase?”, do escritor João Miranda, dia 07 de Abril de 2021, na sede da União dos Escritores Angolanos, em Luanda.