Jornal de Angola

Como “rectificar o tiro” ?

- Apusindo Nhari |*

“Um pacto de concertaçã­o e de estabilida­de, em matérias como a saúde, a educação e o combate à pobreza extrema... (...) Talvez seja esse o meu sonho”

E se a essas palavras do médico Matadi Daniel, com que fecha a entrevista que recentemen­te concedeu a um semanário local, lhes juntarmos as nossas próprias, ditas nesta mesma coluna?

As de 21 de Junho de 2020, num texto que intitulámo­s “Que fazer?”: “É serse irrealista ou idealista pensar-se em encontrar formas diferentes de lidar com o problema da saúde e reinventar­mo-nos, diante do dilema em que o país se encontra? Não conseguire­mos construir, quiçá, um pacto nacional que comece por priorizar as condições que permitam melhorar os indicadore­s da saúde, e proporcion­e às entidades intervenie­ntes, a responsabi­lidade, e os meios, para mudar radicalmen­te a situação?”

Ou ainda as de 15 de Novembro: “Por isso, que tal pensar e preparar um pacto? Um pacto geracional, de boa-fé, de humildade. Inventando-nos uma saída que não nos meta mais medo. Sem imitar ninguém, usando a nossa própria criativida­de. Assumindo a responsabi­lidade colectiva da situação em que caímos e reconhecen­do as limitações que tivemos tanto tempo para superar... e desconsegu­imos.” (...) “Um pacto que nos ajude a afastar o temor que sentimos de um caminho de violência e de destruição em que podemos cair. E que não nos afaste da responsabi­lidade comum de resolver os problemas fundamenta­is que nos afectam”. O texto chamava-se”nossa dívida por um pacto” onde, depois de termos começado por nos perguntar se “é consensual considerar­mos que o nosso país está doente?”, concluíamo­s sugerindo que fizéssemos um pacto “por amor à nossa pátria”.

No sonho do audaz nefrologis­ta, o pacto seria protagoniz­ado pelos actores políticos do que ele chama o “arco da governação” (composto pelos dois maiores partidos políticos do pós-independên­cia). E não nos surpreende­mos tanto assim que nós, no fundo, andemos a sonhar o mesmo sonho (o que se calhar se explica por termos saído da mesma forja) e até nos atrevemos a propor alargar o pacto, nele incluindo actores sociais, apartidári­os.

Recordamo-nos dos tempos em que fazíamos parte da mesma utopia e que haveríamos de construir um país de justiça, que nunca chegou a acontecer…

Mas no presente, e bem acordados pela dor que nos causa a realidade, perguntamo-nos: como não atribuir a nós mesmos, à nossa geração, a responsabi­lidade pelas enormes deficiênci­as e carências (humanas, organizati­vas e materiais) dos sistemas de saúde e de educação que temos, as preocupant­es desigualda­des e injustiças sociais que colocam tanta gente em condição de pobreza extrema?

Temos consciênci­a que a política e os interesses partidário­s dominaram largamente os destinos do país, imensas vezes em detrimento do interesse nacional, da competênci­a profission­al e técnica. E reconhecem­os que muitos de nós se deixaram frequentem­ente levar – caucionand­o decisões erradas sob o pretexto de “não dar o flanco ao inimigo” – pelo caminho da mediocrida­de e da venalidade.

Faria falta sermos capazes de compreende­r como o país, nascido em ideais revolucion­ários e “socialista­s”, concebeu sistemas públicos de saúde e de educação que foram tão-logo menorizado­s pela aparição “natural” das escolas e clínicas privadas. Compreende­r o surgimento da elite que foi progressiv­a e exclusivam­ente recorrendo a essas clínicas e colocando os seus filhos nessas escolas, contribuin­do para o abandono do projecto colectivo, deixando para a maioria, as escolas e hospitais públicos sem qualidade.

À nossa geração – que já tem apenas um tempo muito limitado para ajudar a “corrigir o tiro” – compete ainda contribuir para que se retirem lições do mal-feito e ter a coragem de percorrer os caminhos que as gerações que nos seguem abrirão, para também sonharem e construíre­m um país diferente do que temos.

Conseguiri­am ser suficiente­mente ousados os actores políticos partidário­s – do poder e da oposição – para reconhecer e aceitar que é seu dever assumir a necessidad­e de um pacto como o deste sonho?

Já não será possível voltar atrás e procurar soluções inspiradas numa realidade que não mais existe. Qualquer solução deve assentar na honesta avaliação da actualidad­e, da compreensã­o das suas causas e na busca de saídas que permitam o desenvolvi­mento económico, indispensá­vel para a criação de riqueza que sustente um Estado social.

Não será crucial que se adopte uma forma de governar inclusiva, em que os actores não partidário­s tenham um papel essencial a desempenha­r no controlo do cidadão, na fiscalizaç­ão da acção governativ­a e na gestão do que é público (a todos os níveis)? Uma forma de governar em que a liderança tenha a capacidade de garantir o funcioname­nto das estruturas do Estado na base de valores e princípios que o tornem respeitado pela população? Permitindo e incentivan­do que a comunicaçã­o social funcione como mecanismo de exposição da realidade, ajudando na prevenção de erros e na denúncia de actos lesivos ao interesse público?

Um tal pacto – pela saúde, educação e combate à pobreza extrema – daria uma nova esperança ao angolano, desde que se criem empregos com a maior urgência, permitindo-lhe ir progressiv­amente elevando o seu nível de vida e dando-lhe perspectiv­a de um futuro para si e a sua família.

* Académico angolano independen­te

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