Dois andamentos do discurso ensaístico
O ensaio é um género literário? As respostas multiplicam-se. Perfilam vários autores com diferentes reflexões. Perspectivas teóricas, filosóficas e históricas encontram defensores em todo o mundo. Procuro inscrever-me entre aqueles que fazem igualmente a apologia do ensaio. Mas o impulso da conversa de hoje é-nos dado pelo filósofo espanhol Fernando Savater
Em 2008, Fernando Savater publicou “El arte de ensayar. Pensadores imprescindibles del siglo XX”. É um conjunto de textos introdutórios com os quais apresenta um livro de cada ensaísta numa colecção do ensaio contemporâneo editada pela “Círculo de Lectores” de Espanha. Na edição portuguesa, também com a chancela da “Círculo de Leitores”, inserida na colecção “Temas e Debates”, os tradutores preferiram outro título: “A Arte do Ensaio. Ensaios sobre a cultura universal”. O livro abre com os prólogos dedicados a dois livros, “Do Sentimento Trágico da Vida”, (1913) e “Misticismo e Lógica”, (1917), de dois dos ensaístas predilectos do autor, Miguel de Unamuno e Bertrand Russell, respectivamente.
Numa formulação simples, o ensaio enquanto género é definido pela sua característica principal. Trata-se de um texto em que se verifica a presença mais ou menos explícita do sujeito que o escreve articulando os seus raciocínios e veiculando um conhecimento assente na sua voz pessoal.
Hereges
Fernando Savater seleccionou vinte e cinco ensaístas que qualifica como hereges. Confessa ter operado com um critério. Assim, a sua relevância reside no facto de, com as suas intuições heréticas, serem capazes de engendrar novos caminhos para o ensaísmo e serem textos que não esgotam os temas discutidos.
Entre os textos escolhidos por Fernando Savater destaco alguns que têm como autores ensaístas que também aprecio. São eles: Miguel de Unamuno, Octavio Paz, Isaiah Berlin, Michel Foucault e Yukio Mishima. Por essa razão, à heresia proposta para qualificá-los eu associaria a tragédia. Entre estes cinco ensaístas identifico vozes representativas da perspectiva trágica de viver e ver o mundo, nomeadamente Miguel de Unamuno e Yukio Mishima. Portanto, a heresia e a tragédia constituem os dois andamentos que impregnam os seus textos.
Miguel de Unamuno (1864-1936) e Yukio Mishima (1925-1970) representam os ensaístas que praticam uma heresia trágica. Não é apenas a leitura dos textos breves de Savater que permitem chegar a semelhante conclusão. É necessário conhecer a obra de ambos os autores. A experiência de os ler abre uma porta para o conhecimento de Espanha e do Japão.
A Espanha é vista com a iluminação de um “inconformista radical”, “pensador do contra” que “sempre pregou contra os pregadores oficiais”. O olhar trágico espanhol de Miguel de Unamuno manifesta-se quando se procura compreender a sua interpretação de Portugal e seu povo suicida. Através da vida e obra de intelectuais, e escritores portugueses, ele vai identificar os sintomas da tragédia. O suicídio de escritores como Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Trindade Coelho e Manuel Laranjeira é uma das epifanias trágicas a que Unamuno dedica a sua atenção nos seus dois livros “Por Tierras de Portugal y de España” e “Del Sentimiento Trágico de la Vida”. Mas o ensaísta de Salamanca ainda era mal conhecido em Portugal, durante quase todo o século XX. Só em 1986 foi traduzida e publicada uma colectânea a que se deu um título eloquente: “Portugal. Povo de Suicidas”. Pode dizer-se que Unamuno era um hereje que fazia diagnósticos de tragédias existenciais, próprias e alheias.
Se Miguel de Unamuno era desconhecido em Portugal, apesar da sua profunda afeição pelas terras e literaturas lusas, parece também evidente que Fernando Savater não conhece bem o ensaísmo do país vizinho da península ibérica. Quanto a mim, um dos importantes ensaístas portugueses, por conseguinte, imprescindível para compreender o século XX, não figura nas suas escolhas. Trata-se de Eduardo Lourenço (1923-2020), falecido há cerca de seis meses. Ele consagrou uma inteira obra ensaística ao pensamento que gravitou em torno do destino de Portugal.
Para Miguel de Unamuno Antero de Quental, a que se junta um outro escritor português, o seu amigo Manuel Laranjeira, é a personalidade exemplar do poeta trágico cujos sonhos se desintegram como formas e filhos da ilusão.
Yukio Mishima e Eduardo Lourenço
Com a obra de Yukio Mishima temos a possibilidade de interpretar o Japão que nos é descrito por um dos seus filhos. “Sol e Aço”, (1968), é a autobiografia de outro ensaísta herege trágico, eleito por Fernando Savater.
Nele habita o prenúncio do “seppuku” ou “harakiri”, um ritual trágico a que o escritor japonês se vai submeter, dois anos após a sua publicação. Nesse livro, Mishima define o sentimento trágico que se revela “quando a sensibilidade perfeitamente comum e normal, por um momento, se enche com uma nobreza privilegiada que mantém as outras à distância”. Ele sublinha uma ideia segundo a qual a tragédia esgota-se no conceito de corpo, admitindo a hipótese de que “a carne poderia ser ‘intelectualizada’”, elevando-se ao mais alto nível, atingindo uma intimidade muito maior do que poderia o espírito.” Estas palavras carregam a força psicológica de uma personalidade em cujos arcanos é possível sondar aquilo que aguçava a curiosidade de Unamuno.
Na verdade, os sintomas do “harakiri” cintilam e atingem uma robustez já na sua tetratologia romanesca escrita entre 1969 e 1970 “O Mar da Fertilidade”, comportando os quatros romances: “Neve de Primavera”, “Cavalo Selvagem”, “Templo da Aurora” e “A Queda do Anjo”. As digressões meditativas das personagens constituem-se como isotopias obsessivas centradas na morte e na vida eterna. Aliás, a síntese está contida nas próprias palavras do ensaísta japonês: “tragédia é coisa que pede uma vitalidade e ignorância antitrágicas”.
Portanto, não posso atribuir a Fernando Savater as conclusões que me são também sugeridas pela leitura dos textos seleccionados de Miguel de Unamuno e Yukio Mishima. Mas a heresia trágica que perpassa o discurso ensaístico destes dois autores não tem nada do que poderia merecer a designação de heresia hedonista.
Se quiséssemos fazer uma analogia com a música, admito que os andamentos da heresia não deixam de ter semelhanças com a tragédia porque, podendo a heterodoxia depender do contexto civilizacional em que ocorre, conduz sempre a situações disruptivas. Os planos em que a heresia se manifesta são sempre individuais. Já a tragédia tem sempre uma repercussão colectiva, comunitária. Neste capítulo, a obra ensaística de Eduardo Lourenço revela um enorme interesse. Cheguei a ela através da leitura do seu “Labirinto da Saudade”, livro com o qual dialoga com o ensaísta mexicano Octavio Paz que também se debruçou sobre o “Labirinto da Solidão”. Mas Eduardo Lourenço vai em demanda de uma “psicanálise mítica do destino português”. Curiosamente, além do facto de Fernando Savater não ter seleccionado o ensaísta português, de Octavio Paz destaca o “Arco a Lira”, ensaio da década de 50 do século XX.
O livro de Fernando Savater é, em última análise, uma proposta reflexiva sobre o modo de existência do ensaio, enquanto género literário, e ilustrada com indicações de leituras que podem ser consideradas como obrigatórias para quem não anda à procura de soluções definitivas.
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