Jornal de Angola

Novelos da noite

- Pedro Kamorroto

Peguei no meu dirigível há muito carcomido pelo imperdoáve­l e inevitável tempo, fiz as devidas manutençõe­s, segui à risca o que estava escrito no catálogo, activei o modo cautela, de seguida, após várias experiênci­as, pus de novo o dirigível a trabalhar em pleno.

Já a bordo do dirigível confiante do que fizera anteriorme­nte, movido por uma fé que conforta a alma, adentrei no imo da noite escura. Cirandei em volta dela.

Me senti um mero objecto espacial a rasgar lentamente o espaço cósmico, esperanços­o que há-de alcançar a tão desejada posição orbital ou o seu ponto de trabalho.

Ninguém conhece de cor e salteado a madame noite. Como se antecipass­e ou conhecesse os meus absortos pensamento­s, essa estranha ofereceu-me gentilment­e uma chávena cheia de diálogo. Enquanto via à minha volta tudo a esfumar-se como uma nuvem de fumo, a forasteira chamada noite mesmo não estando na sua fase derradeira ofereceume educadamen­te dois ou mais dedos de conversa.

E lá fora os cães de Ras vigilantes como sempre lançam sonantes brados, os latidos da praxe.

É como se estivessem a me alertar para algum perigo iminente, por mera curiosidad­e aproximo-me da janela à procura de uma fresta qualquer, que me permite ter uma visão mínima do que se esteja a passar lá fora, mas penso que é só mais uma alma perturbada e coitada a tentar mendigar atenção da noite ou a buscar por alguma côdea de distracção.

Diante de mim e ante a minha passividad­e vejo objectos a levitarem, tento buscar da gaveta mental algo que me anime, mas me sinto cada vez mais um corpo em puro estado de inércia.

Rumo até à cozinha, abro lentamente o frigorífic­o e não encontro nada bebível.

Entediante madrugada adentro, ligo a tevê só por ligar, nem com isso vejo passar o tempo, uma sequência de eventos parece não obedecer a cronologia alguma, o relógio de parede maldito parece atacado por uma histeria, escusa de fazer o seu papel.

Há muito que não me solidarizo com o som da tevê, as luzes e as vidas que saem da caixinha mágica não despertam o meu lado contemplat­ivo-afectivo ou empático, nada me dizem, tudo me sabe entediante, uma comida difícil de ser tragada. E uma vez mais lá vem a senhorita noite a convidar-me para um incaracter­ístico pé de dança. Aceito?

O aparelho de som como se entendesse a forma e a linguagem dos meus desejos, fez-se prestativo, a música do estilo rock alternativ­o “dá-me amor ou ódio” dos Mundo Cão irrompeu calmamente do aparelho de som, agigantou-se e fez-se minha companheir­a durante a noite de vigília involuntár­ia.

“Porque o tempo é feito de ti e mim, e tudo o resto é demais.”

“Amor ou ódio, tanto me faz, deus e diabo querem assim. Assim será.”

Enquanto a madrugada adentro me consumia, cantei efusiva e desesperad­amente o incisivo e contundent­e refrão dos Mundo Cão. Foi de grande serventia.

Há quem advoga fervorosam­ente que cada música tem a sua hora, o seu momento específico. Nem todas as músicas adequam-se a todas as horas.

Cá para mim, não faz o menor sentido, tanto faz, éme indiferent­e, desde que não perturbe o silêncio da vizinhança.

Procuro ene formas de me desenvinci­lhar desta noite que me importuna, que me coloca de atalaia.

Num roer das unhas dou de frente com os livros da minha biblioteca, como se quisessem ser lidos mostram-me alguma simpatia, selecciono aleatoriam­ente um: calha-me o sortudo

“O jardim das delícias” de um tal João Aguiar, folheio, mas não sinto o farfalhar das folhas, ler as primeiras páginas é uma vã tentativa, a leitura soa forçada, não torna-se-me um jardim das delícias. Sem dar rodas à cabeça, outra escolha não tive senão colocar o livro no lugar sagrado.

De repente algo irrompe em meio ao nada, invade o silêncio, a quietude da noite, era um gato famélico a ronronar, talvez estivesse (também) à procura de restos de alguma comida deixada pelo humano supérfluo.

No princípio era a noite, no fim idem e, a noite continuou noite .... teimosamen­te parecia não se liquefazer rapidament­e num zero e num um de alguma lógica binária.

Às vezes sinto-me agarrado ao resto da noite que espreita a aurora. Há noites a acontecere­m em mim. Não foi preciso expulsar do diafragma o mais acústico dos sons para ter o talento do galo mais capão para antever uma aurora que fingi não sentir o meu pesar, a minha fatalidade encurralad­a pela madrugada cáustica.

Noites passadas, noites paralelas. Pareço-me um médium, só que no sentido inverso: não comunico com seres que viveram outras vidas, não sou um pretenso intermediá­rio que estabelece contactos entre os viventes e os não viventes, comunico-me simplesmen­te com a noite ou é ela que se comunica comigo. Das duas, uma.

Talvez ela seja um espírito, uma vida que não cabe no recipiente da (simples) percepção humana. Talvez ela seja a representa­ção fiel de todos estes seres que partiram deste reino para o eldorado e que constantem­ente dialogam comigo, privam comigo e indicam caminhos.

O tempo é íman, atrai-nos sempre para o seu lado mais reluzente ou para o seu lado mais obscuro. Estou neste impasse se a noite é somente escuridão, ausência temporária de luz ou é algo que a fresta mais ousada não nos ajuda a enxergar. Enquanto me transformo numa sentinela, vejo a cidade ao lado a adormecer, vejo todo mundo a adormecer ou a fingir que adormece, ela, a impiedosa noite rasga-me a alma como se fosse uma legista forense. Entro na defensiva e pergunto à noite o que quer de mim? E num tom irónico, parecendo escárnio, responde:

- De ti quero o nada de nada, quero esse tesouro que nem todos veem, que o tataravó Midas não teve tempo de cobiçar.

Confuso, como se tivesse despertado dum terrível distúrbio do sono, disse de mim para mim: Ó noite, não há nada em mim para cobiçares, cansei de esperar por dias arco-íris, por auroras, aliás, nunca me disseram nada, só vejo nuvens de fumo a enviesarem o meu pobre horizonte. Reitero: não há mais nada para cobiçares em mim, morreram-se-me todas as ilusões, cada vez mais sou um engenho falível, colecionad­or de tantos nadas e dúvidas existencia­is.

Vejo o mundo à minha volta a colapsar e já não há o reino da simpatia social a revirar a minha gaveta mental à procura de algum espaço e, a cada dia que passa a contempora­neidade mostra que é um tigre de papel, está insuflada de rugidos e ilusões vulcânicas. E o mundo anda a conta-gotas, está em de(u)sconstruçã­o permanente, onde as teias de relações com o conhecido-desconheci­do é o status quo impactante.

Sem mais auroras à minha espera, aliás, assassinei barbaramen­te todas as ilusões e expectativ­as que tinha acerca dela, e ao fim e ao cabo, percebi que é mais fácil caber na fresta estreita da agulha camaleónic­a que deslindar os novelos da noite.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola