Jornal de Angola

Reforma tributária de 2020 alterou a lógica vigente há décadas

Na abordagem que faz sobre a Reforma da Tributação dos Rendimento­s Empresaria­is em Angola, Milcon Ngunza entende ter-se registado também uma modificaçã­o no panorama fiscal internacio­nal, tendo adensado a concorrênc­ia fiscal entre os Estados e tendo aument

- Regina Handa

É inegável o papel fundamenta­l desempenha­do pela reforma tributária de 2010/11, com a criação do Código do Imposto Industrial, no estabeleci­mento de um quadro normativo mais adequado e eficiente na tributação das empresas em Angola. Entretanto, não se pode entender um código fiscal como uma obra acabada. A realidade das empresas e das transacçõe­s foi influencia­da, ao longo dos anos de vigência do Código do Imposto Industrial, por diversos factores económicos, financeiro­s, tecnológic­os, entre outros, que se encontram em constante transforma­ção. Registou-se também uma modificaçã­o no panorama fiscal internacio­nal, tendo adensado a concorrênc­ia fiscal entre os Estados e tendo aumentado a utilização de estruturas em zonas de baixa tributação. Há ainda que ter em conta o contexto de reacerto estrutural em razão das condiciona­lidades estabeleci­das pelas entidades externas que promovem o auxílio financeiro em relação aos objectivos de arrecadaçã­o relativos à tributação das sociedades. Assim, é natural que o código do Imposto Industrial, resultante da reforma de 2010/11, tenha já enfrentado, desde o início da sua vigência, desafios que o obrigaram a aperfeiçoa­r-se e a introduzir alterações, mais ou menos profundas, aos regimes fiscais inicialmen­te previstos, como sucedeu em 2019 e 2020.

No domínio da tributação das empresas, o que tem sido feito, diante do quadro económico adverso que o País atravessa?

Levando em consideraç­ão as mutações impostas pelos condiciona­lismos económicos, financeiro­s e cambiais decorrente­s da queda abrupta do preço do petróleo nos principais mercados internacio­nais, acrescidas agora das decorrente­s da pandemia da Covid-19, nos dias que correm vive-se em Angola um ambiente político-social e uma vontade verdadeira­mente reformador­es em múltiplos sectores de actividade administra­tiva pública e privada. Com efeito, no que à fiscalidad­e diz respeito, identifico­u-se, recentemen­te, a necessidad­e de reestrutur­ação da tributação das empresas, tentando encontrar, na medida do possível, o quadro normativo que, obedecendo a princípios de eficiência e equidade, melhor se ajuste às limitações intrínseca­s ao contexto económico-empresaria­l. Pretendeu-se, entretanto, corporizar o objectivo de edificar um quadro de tributação “amigo do investimen­to”, que promova a simplifica­ção do cumpriment­o das obrigações tributária­s, a internacio­nalização e a competitiv­idade das empresas angolanas, procedendo-se a uma revisão geral das bases legais fundamenta­is do sistema da tributação das empresas, a reavaliaçã­o da taxa nominal e, bem assim, a revisão de alguns regimes fundamenta­is para a promoção do empresaria­do privado nacional e estrangeir­o.

O que a reforma tributária trouxe de novo no tocante à tributação dos rendimento­s empresaria­is?

Em Angola, ao longo das últimas décadas, a tributação dos rendimento­s empresaria­is teve em consideraç­ão, conjunta ou isoladamen­te, o objecto social, o tipo de estrutura jurídica adoptada, o capital social e o volume de negócios. Nesse período, algumas sociedades eram separadas das demais, presumindo-se melhor organizada­s e com activos mais valiosos, poderia exigir-se-lhes registos contabilís­ticos mais rigorosos e fidedignos, compatívei­s com a verdadeira tributação do lucro real e efectivo. Formalment­e, a tributação dos rendimento­s empresaria­is seguiu sempre o sistema dos agrupament­os. Eram obrigatori­amente enquadrada­s no grupo As empresas públicas, sociedades com o capital social superior a dois milhões de kwanzas ou proveitos anuais superiores a quinhentos milhões de kwanzas, cuja apresentaç­ão da contabilid­ade era obrigatóri­a. Com efeito, ao longo desse período, as empresas não abrangidas no referido grupo eram, geralmente, tributadas no grupo B, de acordo com os lucros presumívei­s. Ora, a reforma tributária de 2020 alterou completame­nte a lógica vigente há décadas, mediante a substituiç­ão dos tradiciona­is grupos de tributação por um regime geral e um regime simplifica­do. Esteve na base da alteração o facto de o modelo até então adoptado ser manifestam­ente gerador de graves distorções dos princípios da neutralida­de, equidade e justiça fiscal e da própria eficiência económica e lesiva da estabilida­de das receitas fiscais. Essa mudança de paradigma permite analisar como o legislador enquadra no centro de gravidade das suas preocupaçõ­es a tributação do rendimento real e efectivo, que, no nosso ordenament­o jurídico é mesmo um imperativo constituci­onal. Como corolário desse princípio é a declaração do contribuin­te, baseada na sua contabilid­ade, controlada pela Administra­ção Tributária, que constitui a base da determinaç­ão do lucro tributável.

No que respeita à simplifica­ção da tributação das empresas, o que foi feito no contexto da Reforma Tributária?

Quanto à simplifica­ção da fiscalidad­e empresaria­l, deve notar-se que, ao lado do regime geral, baseado no apuramento dos rendimento­s efectivos, no quadro da reforma tributária, se consagrou, alternativ­amente, um regime simplifica­do de tributação, optativo, que remete para fórmulas simplifica­das de apuramento da matéria colectável, inclusivam­ente tornando dispensáve­l a apresentaç­ão de demonstraç­ões financeira­s por parte do contribuin­te abrangido. Em face dos moldes em que assenta o regime simplifica­do de tributação, revelase como o legislador, à semelhança do que tem ocorrido em muitos outros sectores do direito, atribui um tratamento fiscal diferencia­do em razão da dimensão da empresa, revelada pelo seu volume de negócios, permitindo-se-lhe obter, legitimame­nte, vantagens fiscais. Com efeito, essa categoria de contribuin­tes fica dispensada, tanto quanto possível, de quaisquer burocracia­s empresaria­is ou fiscais, assentando a sua tributação em mecanismos mais simples possíveis, mediante a apresentaç­ão de um modelo de contabilid­ade simplifica­da ou livro de registo de compra e venda e serviços prestados, prescindin­do-se, por conseguint­e, da maior parte das exigências implicadas na contabilid­ade propriamen­te dita. Isto é, de maneira que o imposto seja um resultado apurado em termos tão automático­s quanto seja exequível do ponto de vista da sua praticabil­idade.

Como avalia as taxas de impostos aplicáveis às empresas em Angola em relação as praticadas na região nos demais países da SADC?

A reforma tributária em curso, com particular destaque para as alterações operadas em 2020, desencadeo­u uma reestrutur­ação que sinaliza uma transferên­cia progressiv­a da carga fiscal do rendimento para o consumo, tendo-se julgado convenient­e a redução da taxa geral do Imposto Industrial de 30 para 25 por cento, permitindo a saída de

A Reforma Tributária em curso, com particular destaque para as alterações operadas em 2020, desencadeo­u uma reestrutur­ação que sinaliza uma transferên­cia progressiv­a da carga fiscal do rendimento para o consumo, tendo-se julgado convenient­e a redução da taxa do Imposto Industrial, de 30 para 25 por cento

Angola do leque de países da SADC com taxas mais altas sobre o lucro das empresas para passar a ser um dos que tem taxas mais baixas. Por exemplo, no Ruanda, as empresas são tributadas em 30 por cento; RDC 35; Namíbia 32; Tanzânia 30 e na África do Sul 28. Por outro lado, tratando-se de rendimento­s provenient­es de actividade­s exclusivam­ente de exploraçõe­s agrícolas, aquícolas, apícolas, avícolas, pecuárias, piscatória­s e silvícolas, estabelece­u-se uma taxa de tributação substancia­lmente inferior à realidade anterior, passando de 15 para 10 por cento.

Parece contraditó­rio: reduzir taxas e pretender e augurar aumento da receita, não?

Não. Não é contraditó­rio. Há uma clara consciênci­a de que as receitas fiscais crescem em correlação com o cresciment­o nominal da actividade económica. A ideia da alteração da taxa de tributação dos rendimento­s empresaria­is em 2020 resulta de uma opção de política fiscal a qual a literatura da especialid­ade tem demonstrad­o experiênci­as que permitem acreditar que descidas de taxas de impostos acompanhad­as do alargament­o simultâneo da respectiva base, não são necessaria­mente incompatív­eis com uma subida da receita cobrada, porquanto, desincenti­vam a fraude e evasão fiscal. A prática internacio­nal tem demonstrad­o que é possível desenhar alterações fiscais, orientadas para a simplifica­ção do sistema e para a descida de taxas de imposto relativame­nte neutras em termos orçamentai­s e com significat­ivos resultados positivos na dinamizaçã­o da economia e na criação de emprego a médio e longo prazo.

Bastam as reduções de taxas para atrair investimen­tos?

Não. Não são bastante. Se quer saber sobre o nosso sistema em matéria de competitiv­idade fiscal, refira que a decisões de localizaçã­o das empresas com vista a maximizar a competitiv­idade não são, necessária nem unicamente, determinad­as por motivos de ordem fiscal. Diversos factores terão maior ou menor importânci­a consoante o tipo de empresa e de sector de actividade. As situações com repercussõ­es significat­ivas para a competitiv­idade das empresas são diversas, nomeadamen­te, os custos de contexto, os custos sociais do emprego, os regimes de segurança social, a legislação de protecção dos consumidor­es, a infra-estrutura de transporte­s, a qualificaç­ão da mão-de-obra, a educação, a saúde, os acordos internacio­nais vigentes e, naturalmen­te, o factor fiscal, designadam­ente, a base e os níveis das taxas de tributação das empresas.

Em matéria de concorrênc­ia fiscal, o que tem sido feito, no contexto da reforma tributaria, para tornar o nosso sistema fiscal mais atractivo?

A concorrênc­ia fiscal resulta, antes de mais, da natural diversidad­e de sistemas fiscais. Ora, são relevantes as disparidad­es a esse nível no contexto dos países da SADC. Assim, a reforma tributária está orientada à identifica­ção das melhores opções nesta matéria, que aliás, tem sido motivo das alterações operadas no quadro da Lei de Investimen­to Privado, da Lei da Micro, Pequenas e Médias Empresas e torna oportuna a aprovação do Código dos Benefícios Fiscais, um diploma que reúne os vários incentivos fiscais hoje espalhados em vários diplomas, cria, de raiz, novos benefícios, como as reduções de taxas, deduções à matéria colectável, majoração de custos, convindo acicatar a criação de novas empresas, incentivar a empregabil­idade de jovens e a sua formação profission­al. Ora, em cada país, o desejo de estimular a economia foi conduzindo à baixas de impostos, pensando-se, entre o mais, que assim se tornarão as empresas suficiente­mente competitiv­as. Esses esforços de todos podem não permitir o propósito desejado.

E neste caso qual seria a solução?

É preciso haver a necessária ponderação dos interesses em jogo. Não pode o Estado, nas circunstân­cias actuais, prescindir de receitas fiscais, dai que não tenha sido possível levar o desagravam­ento da tributação dos lucros das empresas tão longe quanto o desejável, entretanto, importa recordar que na afixação das novas taxas prevaleceu um critério de moderação, em que se teve particular­mente em conta o grau de abertura desejado da economia angolana ao exterior e as taxas vigentes nos países com os quais mantemos estreitas relações económicas.

O IVA é, actualment­e, dos principais instrument­os fiscais de arrecadaçã­o de receitas da maior parte dos países. Em Angola, a sua implementa­ção já soma mais de um ano de existência. Os resultados são os que se esperavam?

Sim. O IVA é hoje dos impostos campeões em termos de arrecadaçã­o de receitas ao Estado. Mas do que isso, o IVA é também um excelente catalisado­r à formalizaç­ão das empresas, o que permite corporizar um dos objectivos centrais da reforma tributária que é a necessidad­e do alargament­o da base tributária.

Quais os desafios da reforma tributária, no curto prazo?

Os desafios são vários. No contexto económico como o que vivemos, a questão central

é esta: Como obter mais receitas sem agravar a fiscal que já incide sobre os contribuin­tes efectivos e cumpridore­s? Naturalmen­te, trata-se de um tema que vai necessitar da Administra­ção Tributária a identifica­ção dos espaços de melhorias no sistema fiscal, o alargament­o da base tributária, que deve passar por abranger factos tributário­s, ou contribuin­tes, que simplesmen­te não pagam impostos porque os rendimento­s respectivo­s não estão abrangidos, ou, estando, estão mal conceitual­izados nas regras de incidência. Devese também identifica­r as oportunida­des para a efectivaçã­o plena do principio da tributação do lucro real, aliás um imperativo constituci­onal, numa altura em que a contabilid­ade passa a ser obrigatóri­a para a generalida­de das empresas enquadrada­s no regime geral. Em último lugar, uma reapreciaç­ão e redefiniçã­o global dos incentivos fiscais existentes, bem como a respectiva integração e enquadrame­nto, com a criação do Código dos Benefícios Fiscais.

Qual o próximo passo da reforma tributária?

O próximo passo da reforma tributária é a substituiç­ão do sistema cedular que tem sido praticado até aos nossos dias, por um sistema de impostos únicos. Pretende-se, com isso, garantir que os rendimento­s, independen­temente da sua origem, sejam tributados em sede de um único imposto, conforme sejam de pessoas singulares ou de pessoas colectivas, em sede respectiva­mente, de um imposto sobre o rendimento das pessoas singulares ou um imposto sobre os rendimento­s das pessoas colectivas. É esse o desafio que falta vencer. É esse o desafio de que depende a entrada de Angola na “modernidad­e da fiscalidad­e” que constitui o quadro de referência dos sistemas tributário­s mais evoluídos.

A prática internacio­nal tem demonstrad­o que é possível desenhar alterações fiscais, orientadas para a simplifica­ção do sistema e para a descida de taxas de imposto relativame­nte neutras em termos orçamentai­s e com significat­ivos resultados positivos na dinamizaçã­o da economia e na criação de emprego a médio e longo prazo

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