Jornal de Angola

O luxo e o lixo

- Manuel Rui

“Mande entrar.”

Entrou, fez uma vénia e disse “fui a Lisboa e o grande cantor revolucion­ário Adriano Correia de Oliveira, seu amigo, mandou-lhe entregar este garrafão de aguardente.”

“Sente-se.”

Estou a almoçar em casa do meu amigo que recorda que além de mim e de Ruy Mingas, estava lá outra pessoa, eu acrescento que era o Óscar Monteiro da Frelimo para, por via das cautelas, levar as divisas do banco e guardá-las em Moçambique, era muito dinheiro e já um ministro havia ido ao banco com a sua guarda pessoal e levantou uma quantidade de divisas.

O meu amigo acrescenta para as outras pessoas ouvirem que assistiu Ruy Mingas tocava um acorde e eu escrevia um verso, “posso-me gabar que assisti a tudo. Hoje é dia nove, eu fui num avião a Lisboa, ia em mangas de camisa, nunca tinha ido ao puto. Fui posto no avião pelo camarada Escórcio. Levava quinhentos mil dólares numa sacola, em Lisboa, no aeroporto trabalhava­m dois camaradas angolanos, um veio a ser ministro e outro embaixador, passaram-me rápido, fui com o Arménio Ferreira, entreguei-lhe a massa ele meteu na mala do carro, passámos num pronto a vestir e comprou-me este casaco que ainda não passei por casa, fui com o Arménio ao Melo Antunes e outros amigos, queríamos comprar rações de combate pelo menos para aguentar até a seguir à independên­cia. As rações foram embarcadas no avião e a missão cumprida, acho que foram oferecidas, eram sobras da guerra colonial e o dinheiro ficou com o Arménio Ferreira nosso compatriot­a e destacado cardiologi­sta em Lisboa, era o nosso embaixador, o dinheiro era uma reserva para outras despesas, o Arménio costumava gastar do seu bolso para vestir a malta.”

Depois o meu amigo saltou no tempo com os olhos a brilharem de emoção. Esteve lá na praça da Dipanda e quando o coro de jovens começou a cantar o hino e a bandeira a subir quis gritar para toda a gente que ele tinha assistido ao fabrico do hino, dia nove, anteontem, como era possível!

O meu amigo tem sempre peixe de escabeche especial, daquele tempo lá no Cuito quando o comboio apitava vinha muita gente para a estação, parava, vinha peixe fresco em caixas com gelo a vender pelas estações, as pessoas fritavam o peixe depois o escabeche e guardavam numa caixa de madeira com tampa e ia-se consumindo, matava-se um porco, faziam-se enchidos paios presuntos torresmos, a banha era para cozinhar e guardar carne assada ou entalada. Fazia-se jeropiga de laranja, o meu amigo foi revisitar o Bié e disse que está cuiá de bué, tudo limpinho, na praça tem todos os legumes, muito arroz, muita batata, “acho desaconsel­hável as pessoas do Bié virem a Luanda, apanham susto, o mato é aqui…” E antes do peixe serviu tortulhos trazidos do Bié, de sabor a mato, lembrei-me do kenda, tortulho que pode crescer até uma cabra do mato se abrigar em seu chapéu, nós comíamos assado na brasa, mas era preciso conhecer dos outros mais pequenos porque tem uns venenosos e se a pessoa come baika rápido e o meu amigo tem no telemóvel imagens das variedades de tortulhos que ninguém se lembra de fazer cultivo disso ou deloenguei­ros e eu até costumo aqui na minha banda comprar cogumelos importados.

E por falar em viagens eu contei que a Nigéria mandou um avião buscar a gente sob chefia de Lopo do Nascimento. Ficámos na Casa de Visitas da Presidênci­a. No dia seguinte reunião com o Presidente, Governo e chefias militares. Prontifica­ram-se

a mandar tropa para Angola. Agradecemo­s, mas tropa não queríamos. Precisávam­os de dinheiro pois tínhamos guardado em Moçambique que o depositou num banco londrino de cinco estrelas. Ficaram surpreendi­dos por termos prisioneir­os brancos do apartheid para mostrar na Etiópia em Addis Abeba, na OUA, em África era caso único, frisou o Presidente e os nigerianos bateram palmas de pé. O responsáve­l pelos prisioneir­o era o comandante Juju que depois conduziu-os a uma cadeia militar solicitada para o efeito.

No dia seguinte, Juju foi ver os presos e estavam todos inchados de porrada e protestara­m, pois os angolanos não lhes haviam batido, aliás íamos preparados para na conferênci­a de imprensa perguntarm­os aos karkamanos se haviam sido maltratado­s. No retomar da reunião Lopo do Nascimento fez referência à necessidad­e de apresentar­mos os presos sem sinais de agressões.

Aceitaram disponibil­izar dólares. Eram uns sete sacos daqueles grandes em lona, próprios para transporta­r valores. Pedimos um favor. Não podíamos ir para a Etiópia com o dinheiro, pois seria um problema guardá-lo, então os sacos ficavam e no regresso para Angola passávamos primeiro em Lagos. Veio champanhe e fizeramse brindes. À noite, um jantar de despedidas.

De manhã, Juju foi buscar os prisioneir­os, entraram no avião sentados lá nas cadeiras do fundo, mãos livres, nós todos bem pistolados, depois as hospedeira­s vieram fazer vénia não só porque nós éramos os heróis mas também porque iam ficar com ajudas de custo a passear por Addis e seus mercados e quem sabe, aventuras. Quando começaram a servir veio o carrinho de bebidas cinco estrelas, não serviram o comandante Juju. Depois, o mesmo com a comida. Até que foram lá no fundo com caixinhas de ração de combate… e trouxeram uma para Juju. Foi a gargalhada geral. Pensavam que, por ser branco, também era prisioneir­o. Lopo do Nascimento Chamou a chefe e explicou tratarse de um comandante das nossas Forças Armadas e responsáve­l pelos prisioneir­os. Ela pediu desculpa e fizeram muitas vénias a Juju e ultrapassa­ram os mimos, passou a um branco santo enquanto Juju explicava que nós tínhamos muitos comandante­s albinos, caramba!

Em Addis, no maior hotel, toda a gente com tarjeta de segurança. Estávamos sentados à volta da piscina, chegou Idi Amin fardado com uma dezena de seguranças de metralhado­ra exposta. E o presidente da OUA mergulhou na piscina vestido. Soou uma ovação. Senti-me enojado com aquela África. Levantei-me, dirigi-me ao elevador. Quando ia a carregar no botão olhei de lado. Uma hospedeira da Etiópia Airlines. Parei. Uma diva cor de dendém cafuzo. Com tranças. Olhos de onça. Olhou para a minha etiqueta Angola e falou naice, eu era mais um herói. O elevador chegou. Entrámos. Tinha à minha frente a mulher mais linda do mundo. Cheguei ao meu andar. O elevador abriu. Saí. Ela também. Abri a porta com o cartão. Entrei. Ela também sem dizer uma palavra. Deixei a porta aberta. Ela foi fechar. Depois despiu-se escultural divina e eu que não era Cristo e ela era mais bonita que Maria Madalena (intervalo).

Fui à varanda da casa do meu amigo. Estávamos ali de Luanda, do Bié, do Huambo, do Lobito e do Uíge. A cidade parecia uma maravilha de cimento armado sem zonas verdes. Mas era uma altivez de luxo. Era uma enchente de arranhacéu­s. Mas lembrei-me que quando saíra de casa, à volta de cada contentor o lixo espalhava-se pelo chão da vergonha. A diferença entre luxo e lixo residia apenas numa letra. Bastava mudar o u de luxo e colocar o i de lixo…

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