Jornal de Angola

Sobre Kenneth Kaunda

- Sousa Jamba

O continente africano perdeu um grande filho. Esta é uma frase que é muitas vezes usada de uma forma irreflecti­da. No caso do antigo Presidente da Zâmbia Kenneth David Kaunda, que acaba de falecer aos 97 anos, esta frase faz todo o sentido. Kenneth Kaunda foi uma pessoa muito especial.

Em 1991, depois de 27 anos no poder, Kenneth Kaunda fez algo muito raro no continente africano: depois de ter perdido as eleições, ele aceitou humildemen­te que o seu rival, Frederic Chiluba, tinha ganho justamente. O Presidente Kaunda disse, publicamen­te, que o seu filho, Masuzyo, tinha falecido de SIDA — isto numa altura em que a doença, que era desconheci­da, inspirava muitos preconceit­os… O Presidente Kaunda era um homem com um raríssimo senso de integridad­e e honra.

Claro que Kenneth Kaunda tinha as suas falhas, e como personagem é isto que faz dele uma pessoa altamente fascinante. Numa época em que os pais-fundadores de muitos países tinham optado pelo partido único, culto de personalid­ade, e mesmo sistemas altamente autocrátic­os, a Zâmbia sempre manteve uma espécie de democracia.

Vi o Presidente Kenneth Kaunda pela primeira vez, na televisão, em 1976. Eu nunca tinha visto uma televisão na vida. Estávamos na Zâmbia como refugiados. Fomos recebidos muito bem. No nosso bairro, chamado Twapia, na cidade mineira de Ndola, havia senegalese­s, malawis, somalis, zairenses, rodesianos do sul (zimbabwean­os), tanzaniano­s, ugandenes. Todos estes africanos tinham fugido de várias makas no seu país de origem; a Zâmbia era um oásis de paz e estabilida­de, graças a um sentimento de tolerância promovido pelo Presidente Kaunda.

Depois vi o Presidente Kaunda pessoalmen­te em 1982, quando ele visitou a nossa escola no Mwinilunga, no Nordeste da Zâmbia. Praticamen­te, todo o Governo da Zâmbia deslocou-se para Mwinilunga, que fica perto da fronteira com Angola, e até tem aldeias onde só se fala Umbundu. O Presidente Kaunda veio com um gigantesco helicópter­o. Lembro-me que uma figura de peso vindo da capital disse no discurso que o povo de Mwinilunga se sentia altamente abençoado pela presença do Presidente e que a partir daquele dia Mwinilunga nunca mais seria a mesma, etc. Lembrome-me claramente que o Presidente Kaunda

distorceu um pouco a cara; ele já tinha ouvido muitos discursos do género. Lembro-me claramente deste dia porque havia a possibilid­ade de eu mais três colegas (Ceasar Sichula, Harrison Chickasa e Felix Nyikosa Kayombo) entrevista­rmos o Presidente da República. Na altura eu tinha dezasseis anos e fazia parte da equipa que produzia a “Mwinilunga Express” — o jornal da nossa escola. Na tradição anglófona, o jornal da escola é muito importante, porque é lá onde os futuros escritores e jornalista­s começam a dar os primeiros passos literários. Nunca chegamos a entrevista­r o Presidente Kaunda, porque tão logo terminou o discurso regressou para o helicópter­o e desaparece­u. Suspeito que quem nos tinha alertado para a possibilid­ade de entrevista­r o Presidente da República não teve coragem de avançar com a proposta. É que naquela altura a Zâmbia tinha conhecido uma década de partido único; havia um esforço tremendo para esmagar tudo o que era adversário político.

O Presidente Kenneth Kaunda nunca deixou o seu lado totalitári­o enevoar os seus princípios. O Presidente Kaunda nunca chegou a perseguir os seus adversário­s com a ferocidade de um Kamuzu Banda, no Malawi. Estamos a tratar de uma figura que lacrimejav­a em público porque os seus concidadão­s estavam a beber muito. Na questão da libertação da África Austral, o Presidente Kaunda foi muito firme e altamente flexível.

A outra vez que vi o Presidente Kaunda foi em 2005, num voo de Joanesburg­o a Lusaka. O Presidente Kaunda sentou-se na primeira fila do pequeno avião e adormeceu até que o avião aterrou em Lusaka. Durante o voo, de cerca de uma hora, os passageiro­s foram louvando o grande homem. O Presidente Kaunda era um avô querido da nação, um grande exemplo de liderança. Falavase dele como um candidato apto ao Prémio Nobel da Paz, devido ao seu papel na sensibiliz­ação do mundo em relação ao SIDA.

Alguns anos atrás, um membro da família Kaunda, depois de me ter ouvido numa entrevista na BBC, aproximou-se de mim para eu escrever uma biografia autorizada do antigo Presidente da Zâmbia. Sempre esperei fazer isso e estava a preparar-me para me deslocar ao país da minha infância. Infelizmen­te, não poderei entrevista­r esta grande figura dos nossos tempos.

Lembro-me que uma figura de peso vindo da capital disse no discurso que o povo de Mwinilunga se sentia altamente abençoado pela presença do Presidente e que a partir daquele dia Mwinilunga nunca mais seria a mesma, etc.

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