Afinal, onde mora o perigo?
Actualmente é quase uma redundância afirmar que se assiste a uma deriva autoritária em todo o mundo. A democracia está em perigo. Mas de onde provêm as maiores ameaças à democracia?
Recentemente, li uma afirmação de um dos desses bravos defensores do complexo de superioridade moral ocidental que nos assegura, sem qualquer sombra de dúvida, que a actual deriva autoritária no mundo “é impulsionada pela Rússia e pela China”. A nova guerra fria parece estar aí, em todo o seu esplendor e, mais uma vez, com todos os seus equívocos. Nuances para quê?
E, no entanto, elas existem. Desde logo, e contrariamente ao senso comum (ou mediático?), a Rússia actual pouco ou nada tem a ver com a antiga União Soviética, não só em termos de modelo económico, mas também no plano político-ideológico. No plano económico, a Rússia é hoje um estado capitalista “para-selvagem”, controlado pelas grandes oligarquias locais, claramente associadas ao poder político. Em termos políticos, a democracia é frágil e limitada. Por fim, a ideologia dominante deixou ser o “comunismo”, tendo sido substituída, resumidamente, por uma amálgama de nacionalismo e saudosismo histórico, remetendo, inclusive, para uma era pré-comunista. Há, mesmo, pontos de contacto com várias ideias da extrema direita.
Quanto à China, trata-se de um modelo de capitalismo de estado assente num regime de partido único, cuja ideologia, mau grado a manutenção dos rótulos, ritos e práticas “comunistas”, tem muito mais a ver com o confucionismo do que com o marxismo-leninismo ou, menos ainda, com o marxismo.
Porquê, por conseguinte, a insistência em manter no mesmo saco a Rússia e a China e, mais do que isso, propalar que a actual deriva autoritária global é “impulsionada” por esses dois países (a não menção a outros responsáveis por tal deriva significa, evidentemente, que “só” os referidos estão por detrás dos novos autoritarismos em crescimento em todo o mundo)? Além de aproveitar uma certa “dinâmica” herdada da memória histórica recente, trata-se simplesmente de geopolítica, tendo a ver com o confronto entre o capitalismo ocidental, em particular os EUA, e o capitalismo chinês, sobretudo, pela hegemonia global (a disputa com a Rússia é mais pela hegemonia regional).
A verdade, contudo, é que o maior perigo para a democracia provém, hoje, dos próprios Estados Unidos da América. De facto, vou arriscar: mesmo ressalvando-se os equívocos de todos os determinismos, é mais fácil imaginar a transformação dos actuais regimes russo e chinês em democracias aceitáveis, pois esse tem sido o “sentido da História”, do que prever como evoluirá e terminará a nova “guerra civil” que está a germinar presentemente na maior potência mundial.
A democracia está ostensivamente sob ataque na América. O trumpismo é a face e o instrumento desse ataque, mas, na verdade, ele apenas assume os temas da alt-right americana, que reproduzo aqui, com adaptações, de um artigo de José Pacheco Pereira no Público: guerra cultural, ataque ao Estado social, eliminação do papel do Estado na economia, hostilização dos direitos laborais e sociais, limitação da liberdade sindical, oposição aos direitos das mulheres e das minorias de género. A actual tentativa dos republicanos no sentido de limitarem o exercício do voto, em especial pelos negros, é uma estratégia crucial para a viabilização dessa agenda.
Essa agenda, note-se, está a ser imposta, com menor ou maior resistência, em países como a Hungria, a Polónia, o Brasil e até a Índia. A deriva autoritária nesses e outros países, portanto, está a ser impulsionada pelo trumpismo e não pela Rússia ou a China.
Alguém já imaginou o que será do mundo se a sua maior potência económica, militar e nuclear, cuja influência global é determinante, cair nas mãos da extrema direita e se converter, se não numa ditadura, pelo menos numa autocracia?
A democracia está ostensivamente sob ataque na América. O trumpismo é a face e o instrumento desse ataque, mas, na verdade, ele apenas assume os temas da alt-right americana, que reproduzo aqui, com adaptações, de um artigo de José Pacheco Pereira no Público: guerra cultural, ataque ao Estado social, eliminação do papel do Estado na economia, hostilização dos direitos laborais e sociais, limitação da liberdade sindical, oposição aos direitos das mulheres e das minorias de género