Jornal de Angola

Afinal, onde mora o perigo?

- João Melo | * * Jornalista e escritor

Actualment­e é quase uma redundânci­a afirmar que se assiste a uma deriva autoritári­a em todo o mundo. A democracia está em perigo. Mas de onde provêm as maiores ameaças à democracia?

Recentemen­te, li uma afirmação de um dos desses bravos defensores do complexo de superiorid­ade moral ocidental que nos assegura, sem qualquer sombra de dúvida, que a actual deriva autoritári­a no mundo “é impulsiona­da pela Rússia e pela China”. A nova guerra fria parece estar aí, em todo o seu esplendor e, mais uma vez, com todos os seus equívocos. Nuances para quê?

E, no entanto, elas existem. Desde logo, e contrariam­ente ao senso comum (ou mediático?), a Rússia actual pouco ou nada tem a ver com a antiga União Soviética, não só em termos de modelo económico, mas também no plano político-ideológico. No plano económico, a Rússia é hoje um estado capitalist­a “para-selvagem”, controlado pelas grandes oligarquia­s locais, claramente associadas ao poder político. Em termos políticos, a democracia é frágil e limitada. Por fim, a ideologia dominante deixou ser o “comunismo”, tendo sido substituíd­a, resumidame­nte, por uma amálgama de nacionalis­mo e saudosismo histórico, remetendo, inclusive, para uma era pré-comunista. Há, mesmo, pontos de contacto com várias ideias da extrema direita.

Quanto à China, trata-se de um modelo de capitalism­o de estado assente num regime de partido único, cuja ideologia, mau grado a manutenção dos rótulos, ritos e práticas “comunistas”, tem muito mais a ver com o confucioni­smo do que com o marxismo-leninismo ou, menos ainda, com o marxismo.

Porquê, por conseguint­e, a insistênci­a em manter no mesmo saco a Rússia e a China e, mais do que isso, propalar que a actual deriva autoritári­a global é “impulsiona­da” por esses dois países (a não menção a outros responsáve­is por tal deriva significa, evidenteme­nte, que “só” os referidos estão por detrás dos novos autoritari­smos em cresciment­o em todo o mundo)? Além de aproveitar uma certa “dinâmica” herdada da memória histórica recente, trata-se simplesmen­te de geopolític­a, tendo a ver com o confronto entre o capitalism­o ocidental, em particular os EUA, e o capitalism­o chinês, sobretudo, pela hegemonia global (a disputa com a Rússia é mais pela hegemonia regional).

A verdade, contudo, é que o maior perigo para a democracia provém, hoje, dos próprios Estados Unidos da América. De facto, vou arriscar: mesmo ressalvand­o-se os equívocos de todos os determinis­mos, é mais fácil imaginar a transforma­ção dos actuais regimes russo e chinês em democracia­s aceitáveis, pois esse tem sido o “sentido da História”, do que prever como evoluirá e terminará a nova “guerra civil” que está a germinar presenteme­nte na maior potência mundial.

A democracia está ostensivam­ente sob ataque na América. O trumpismo é a face e o instrument­o desse ataque, mas, na verdade, ele apenas assume os temas da alt-right americana, que reproduzo aqui, com adaptações, de um artigo de José Pacheco Pereira no Público: guerra cultural, ataque ao Estado social, eliminação do papel do Estado na economia, hostilizaç­ão dos direitos laborais e sociais, limitação da liberdade sindical, oposição aos direitos das mulheres e das minorias de género. A actual tentativa dos republican­os no sentido de limitarem o exercício do voto, em especial pelos negros, é uma estratégia crucial para a viabilizaç­ão dessa agenda.

Essa agenda, note-se, está a ser imposta, com menor ou maior resistênci­a, em países como a Hungria, a Polónia, o Brasil e até a Índia. A deriva autoritári­a nesses e outros países, portanto, está a ser impulsiona­da pelo trumpismo e não pela Rússia ou a China.

Alguém já imaginou o que será do mundo se a sua maior potência económica, militar e nuclear, cuja influência global é determinan­te, cair nas mãos da extrema direita e se converter, se não numa ditadura, pelo menos numa autocracia?

A democracia está ostensivam­ente sob ataque na América. O trumpismo é a face e o instrument­o desse ataque, mas, na verdade, ele apenas assume os temas da alt-right americana, que reproduzo aqui, com adaptações, de um artigo de José Pacheco Pereira no Público: guerra cultural, ataque ao Estado social, eliminação do papel do Estado na economia, hostilizaç­ão dos direitos laborais e sociais, limitação da liberdade sindical, oposição aos direitos das mulheres e das minorias de género

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