Morro adiado
As empresas que vão conseguindo algum trabalho – sobrevivendo a custo – vêm as despesas aumentadas com testes e controles, e a falta de produtividade agravada pelas regras que se lhes impõem. O país permanece enredado numa camisa de forças que lhe retira a vitalidade
“Mas então, Apusindo, não voltaste ao Morro?”– surpreendeu-nos a questão, colocada logo assim na primeira frase da carta que tirámos de um envelope algo amarfanhado, como se tivesse percorrido esta nossa terra de lés-a-lés até que, por artes que não conseguimos alcançar, ali veio dar à costa.
Vinha encolhido numa garrafa, que flutuou até um dos nossos esconderijos de domingo, algures junto às sujas praias da Corimba, onde crianças brincam sem ainda recear o futuro mal preparado que as espera.
Praia de onde saímos regularmente para juntar um pouco de exercício – remos nas mãos – à ingente necessidade de limpar a mente com a paisagem, mesmo nestes dias enevoados pelo cacimbo que acinzenta as manhãs e amacia o mar. Mar de onde olhamos à volta com sofreguidão, para entrevermos o bucólico quadro de uma gaivota sobre um pedaço de qualquer coisa, pequena ilha flutuante de lixo que se interpõe entre nós e umas ilhueta distante, ligeiramente sugerida no horizonte: a nossa betânica cidade.
O Morro – que sabemos frio nestes dias – está lá, longe, no tão apetecido Planalto Central, incentivando aplausos que aqueçam as mãos e dêem coragem para fazer uma nova revolução. Tornou-se ainda mais distante nestes tempos em que a pervasiva pandemia (e a forma como está a ser gerida) nos tolhe os movimentos.
É como se tivéssemos um “pequeno” pico no sapato: desconforto que ignoramos de início por nos parecer insignificante, mas que se avoluma com o prosseguir da caminhada, acabando por se tornar insuportável, obrigando-nos a interrompê-la.
Nunca mais voltámos, pois. Mas procuramos ainda assim elevar-nos, buscando os sinais, notícias, emoções, que nos ofereçam uma percepção do que se passa pelos quatro cantos do país. Afinal, o que esperamos do Morro é o perfeito local de observação, onde nos possamos fundir com as justas aspirações – e também com os desencontros – de todos os angolanos.
Porque, felizmente, a vida acontece independentemente de nós. De cada uma das nossas decepções. A Terra gira. Acima da capa cinzenta que nos envolve, o Sol move-se. Enquanto cá em baixo os homens, como formigas, batalham pela sobrevivência, dia após dia, num ciclo interminável que nos obriga a reinventarnos a cada momento.
Nos arredores de Menongue foram encontradas, numa igreja, trezentas e tal carteiras que tinham sido roubadas das escolas, noticia a Rádio Nacional de Angola.
Agricultores do Planalto receiam não ter boa colheita, este ano. Mais a Sul, populações sobrevivem com a ajuda de outras partes do país, pois a seca foi implacável. Duas mil e trezentas toneladas de arroz apodreceram nos silos, em Sanza Pombo (revelado pela Luanda Antena Comercial no seu “Andar o País”). Mais de mil e oitocentos empregos serão criados em novas unidades fabris a implantar na Zona Económica Especial dos arredores de Luanda. Estradas para o Leste estão em muito melhor estado. No Huambo, as autoridades provinciais anunciam ter reparado mais de trezentos km de estradas secundárias e terciárias, de novecentos previstos, com os milionários meios adquiridos pelo Ministério das Obras Públicas. Luanda desgoverna-se a pique e os luandenses já nem sabem se riem se choram, abuamados com a perspectiva de um faraónico projecto de metro de superfície. O ano lectivo mudou de calendário,alinhando-seestranhamente ao das europas, num ambiente de descrédito no modelo educacional... e com o kota Dario a emitir, a propósito, gritos pungentes nas redes sociais. O Fundo Monetário Internacional aplaude as medidas económicas adoptadas, mas ninguém percebe aonde tais reformas nos vão levar, nem quando resultarão em vida melhor para as populações.
Peças do imenso puzzle em que todos vivemos e que a todos afecta. Neste país em que é tão difícil ter-se uma visão de conjunto, realista, completa e não manipulada.
“Mas, Apusindo – tu que nasceste em tempos de pandemia para propor algo que o país pudesse fazer, num alento para sermos melhores –, como pudeste abandonar o teu querido Morro?”
Como poderia lá ter ido, sanitariamente cercado em Luanda, cumprindo as regras para conter o ‘bicho’ com ar de punk que tem mantido o Mundo em sentido desde o início de 2020?
Entretanto, as populações do interior, que procuravam melhorar a sua precária vida como pequeno comércio à beira da estrada, estiolam. As empresas que vão conseguindo algum trabalho – sobrevivendo a custo – vêm as despesas aumentadas com testes e controles, e a falta de produtividade agravada pelas regras que se lhes impõem. O país permanece enredado numa camisa de forças que lhe retira a vitalidade.
E o brilho. Como uma parede que se encheu de novos cartazes, vivos, coloridos, vibrantes, anunciando boas novas, impressionantes possibilidades, e que a chuva, o vento, a poeira, o descaso dos transeuntes, vão transformando num quadro desleixado. Como se o espectáculo anunciado tivesse sido indefinidamente adiado... e o promotor disso não fizesse caso.
O resto da humedecida carta estava quase ilegível. Mas deu para perceber que se lhe perguntava, já no fim: “Diz só ainda, Apusindo: o país vai melhorar? O desespero dos pobres vai acabar?”
Faz falta acreditar que sim (optimistas incorrigíveis)! Não sabemos é quando...
* Académico angolano independente